quarta-feira, 20 de maio de 2009

Hic Sunt Dracones







Eles caminham entre nós

Jeremias sabe e isto o preocupa, veja o porquê em:

Hic Sunt Dracones


Anos atrás este vilarejo oculto nas montanhas era povoado e cheio de vida, crianças brincavam na velha fonte que ficava próxima do coreto; os idosos proseavam sobre velhos amores, sobre a ascensão e queda dos amigos e sobre os estranhos desaparecimentos que ocorreram no passado e volta e meia ocorrem no presente – alguns falavam de sonhos estranhos com vultos, serpentes e corujas que ocorriam antes destes estranhos sumiços. A cidade entrava num estado de tensão, as beatas e os religiosos rezavam e, por fim, alguém sumia e por meses tudo voltava a normalidade, a família abatida vivia seu luto. Até a ocorrência de um novo sumiço inexplicável...

Quando Bill Cascata desapareceu em plena praça central em meio aos festejos de todos os santos, a cidade atingiu, por fim, seu limite do pânico; uma milícia foi rapidamente formada e invadiu plantações, cavernas, descampados em perseguição ao seqüestrador – porque Bill era o mais amado, o mais querido dos moradores de Cupim.
Bill ajudava tanto ricos quanto pobres, religiosos e não-religiosos, empregados e desempregados, camponeses e urbanos – se estivesse ao alcance de Bill, ele o faria.

Um dos grupos que permaneceu na cidade chegou perto, pois na confusão parte da cidade tomou um rumo e um grupo pequeno seguiu uma pista dada por um bêbado - a história que os membros deste grupo contam é esta:

Naquele dia uma pessoa viu em meio a cantoria e a procissão quando uma sombra saída de uma viela próxima ao desfile abraçou Bill e o puxou para a escuridão da viela – pode ouvir um grito, era o que parecia e isto não tinha a ver com a bebedice em que se encontrava. A distância não pode estabelecer se era homem, mulher ou bicho o que atacara Bill – se fosse uma onça, era das grandes. O grupo então entrou na viela que o bêbado – Dimas era seu nome – indicara e invadiu casas, subiu em telhados. Em meio a caçada o grupo teve dificuldade em entrar no velho casebre do Tom, parecia uma fortaleza escondida por trás de velhos madeirames na parte mais degradada da cidade a qual aquela viela conduzia. O Tom era um sujeito expansivo e falador, conhecia muitos e muitos casos e contava histórias sobrenaturais ao redor de fogueiras na parte mais escura da pracinha como ninguém. Um dos perseguidores por fantasia ou pura maldade jurou ter visto um vulto no telhado do casebre do Tom. Partiram para lá. Quando conseguiram arrombar a porta da casa de Tom, um cheiro forte, como de carne de açougue estragada escapou do interior escuro, revirando o estômago de alguns e assustando outros.
“O que Tom guarda aqui?” Indagou Regis “Não sei, vamos entrar logo, antes que a coisa fuja!” completou José com um pedaço de pau na mão. Jeremias que integrava o grupo se adiantou e invadiu a sala escura.

Vasculhando a casa em completa escuridão, tropeçando em velhos móveis algo extraordinário aconteceu – num canto escuro, Jeremias encontrou uma sombra com substância, grande como um homem, incrédulo, Jeremias tocou a substância escura com um cabo de vassoura, a coisa guinchou e se jogou em sua direção derrubando-o e beliscando de forma pegajosa a sua mão enquanto saltava por cima dele. A coisa se atirou contra uma janela destroçando-a, em meio a gritos de “Pega, pega!” e escapou da casa para nunca mais ser vista.

Uns falaram em chupa-cabra, outros em Lobisomem, outros em aparição e a todos que indagavam Jeremias sobre a coisa que enfrentara, ele dizia com ar assustado:
- Só sei dizer que era uma coisa forte, escura e não era nem homem, nem animal, sei lá, parecia um filhote de cruz-credo!
Para os amigos mais próximos ele segredou algo apavorante:
- A coisa me tocou e sua mão era fibrosa e úmida e tinha um hálito estranho, agradável, os olhos totalmente negros e sua face, era em parte a face de Bill e a outra parte a face de Tom – totalmente desigual, desproporcional. E a coisa sorriu para mim enquanto me derrubava – não quero mais ver aquele sorriso. Depois disto, Jeremias virou um recluso, trancado em casa, não atendia ninguém – passaram alguns dias e por fim, desapareceu da cidade. Muitos acreditam que foi embora e logo, a versão mais apavorante circulou e as pessoas, supersticiosas ou fanáticas religiosas começaram a ir embora, em questão de meses Cupim se tornou um vilarejo fantasma; pois os sumiços prosseguiram e atingiam qualquer pessoa, em qualquer horário. Ficou endêmico. A lenda tomou conta das outras cidades próximas, histórias apavorantes circulavam – muitos diziam ter visto o espectro de Bill em encruzilhadas, outros que um espectro com a aparência de Tom atacava os rebanhos próximos e muitos dos que restaram não andavam mais pelas estradas floridas sozinhos. Andavam acompanhados, a pé ou em suas bicicletas, com armas diversas, facões, armas como arcabuzes, garruchas, revólveres e espingardas.
Jeremias morava agora há quilômetros de Cupim e aquela noite sobrenatural no barraco de Tom ficara dez anos no seu passado. Hoje, casado e com um filho de oito anos levava a vida como comerciante de calçados em Formigas. Sua esposa sabia um pouco sobre aquela noite macabra, mas isto era passado enterrado e tinham outras preocupações mais sérias e presentes como o casamento, a educação do filho e os estoques da loja.

Jeremias chegou a Formigas para morar com seus tios, já que seus pais haviam morrido há anos, era a terceira cidade que morava desde que fugira de Cupim, os pesadelos diminuindo aos poucos – o pesadelo daquele rosto disforme se apagando lentamente. Logo começou a reconstruir sua vida. Com a morte dos tios herdou a loja de sapatos que ajudara a construir e sua vida agora parecia caminhar na direção de uma cômoda e perpétua felicidade num vilarejo do interior. Assim pensava, até que os sonhos com vultos, corujas e serpentes voltaram...

Não deu crédito aos sonhos a principio, achou tratar-se de stress passageiro com a crise atual ou lembranças bloqueadas que emergiam de seu subconsciente segundo lera em velhos livros do tio falecido. Mas um sonho em particular e um fato real o fizeram temer o pior. O sonho ocorrera dias antes da festividade de todos os santos da qual não participava mais, pois se convertera ao protestantismo anos atrás.
No sonho, Bill conversava com o velho Macedo e o assunto de ambos era no mínimo assustador. O velho Macedo era uma figura curiosa, com sua velha bengala de cristal e suas falas confusas – só que no sonho, conversava cortesmente com Bill a beira de um velho barranco próximo de seu barraco na periferia de Cupim e ao lado do velho lixão da cidade. O assunto girava em torno de morte e caçadas:

- Então agora você está no corpo do Bill? Afirmou o Velho Macedo
- É um dos melhores em anos, tem agüentado bem e procuro não consumi-lo como fiz com os outros – uma hora terei que buscar outro, mas já faço idéia. De qualquer forma agora restamos só nós dois em Cupim e minha esperança era possuir seu corpo. Respondeu Bill com um olhar de cobiça.
O velho não pareceu se intimidar:
- Como você pode ver, isto está fora de questão, eu não vou ceder meu corpo a você e nem para os vermes da terra. Corpos resistentes como este são raros. Ficamos assim, cada um no seu estádio.
- Cada um com seu mapa cartográfico para marcar terreno, nosso acordo de mútua proteção não tem mais sentido para mim.
Bill fez um último ricto de ameaça com seus olhos totalmente negros, o Velho Macedo virou as costas a ele, com desdém.
- Então você não tem medo de mim? Bufou Bill no sonho.
- Você, pequena criatura é que deveria me temer, estou reservado para o fim dos tempos e só faço aguardar, por isto vou ficar aqui em Cupim. Se alguém deve sair, este alguém é você – não sou um humano indefeso que você espreita e caça em noites escuras, não vê que nem os vermes da terra ousam me arrastar para as profundezas?
O Velho Macedo pareceu dobrar de tamanho e virou-se com um brilho escarlate na direção de Bill e sussurrou entre os dentes, com horrendos olhos vazados, olhos sem órbitas, vazios, profundos e murmurou:
- Vá embora agora, criatura!
Com a ameaça, Bill recuou quase caindo no barranco, guinchou em resposta e por trás do luar enevoado, se atirou no barranco, só que não houve um baque do corpo, e sim, um bater de asas – um vulto sumiu no horizonte enevoado do sonho.
O velho Macedo pareceu olhar do sonho para mim, por um momento, pensativo e voltou a sua forma claudicante e sussurrou enquanto se apoiava em sua bengala apodrecida:
- Já vai-vai tarde criatura, pesti-pestilenta.

O sonho se desfez e Jeremias acordou suado na cama, ao lado de sua esposa – foi até o quarto do filho, este dormia tranqüilo. Na cozinha pegou um copo de água e se sentou no velho sofá da sala, olhando para os reflexos na janela, talvez a procura do vulto esvoaçante de Bill, apenas viu a noite se tornar dia.

No dia seguinte, o pior aconteceu, pois além do sonho e da péssima noite, recebeu uma visita inesperada em sua loja. Enquanto estava ajoelhado demonstrando um sapato para uma cliente, sentiu um odor familiar, um vulto pegou uma das caixas de sapato e ficou em pé observando-o a distância, esperando ser atendido. Quando olhou com atenção a figura impaciente – estremeceu – era o velho Bill em pessoa. Pediu um momento para Bill e este aquiesceu – não o reconhecera. O hálito perceptível era idêntico aquele que sentira no casebre do Tom. Concluiu o atendimento com sua cliente e pediu que a outra vendedora atendesse Bill neste ínterim, afastou-se e lá do estoque observou o homem comprar um par de sapatos após prová-los. O reflexo no espelho parecia distorcido de onde observava cliente e vendedora. Bill parecia menor, do tamanho de Tom, as pessoas encolhem com o passar dos anos, não é isso? Tanto assim. Uma coisa o perturbou, um leve oscilar no andar de Bill que tinha certeza absoluta pertencer ao velho Tom – em cidades pequenas notamos tantas coisas nas pessoas, temos tempo para isto, afinal o tempo passa em outra velocidade. Tinha certeza de notar trejeitos ora de um, ora de outro em Bill. Com sua sacola, o cliente foi embora, totalmente indiferente ao drama e a tensão de Jeremias.
Jeremias esperou e se dirigiu ao caixa, tinha uma curiosidade imediata; o cliente pagara com cheque – o nome no cheque? Antonio A. Callado. O nome de Tom?
O cheque era de Tom, o corpo de Bill, o manquejar do Tom, o reflexo no espelho de Bill, sua mente girou, sentiu pontadas no alto da cabeça. Pensamentos voaram como moscas pela loja. Coisas estranhas caminham entre nós, com certeza, aqui há dragões.

- Jeremias. Chamou a vendedora assustando um lunático Jeremias:
- O quê? Cortou secamente, com um olhar frio endereçado a funcionária.
A vendedora o observou surpresa – seu chefe estava muito estranho hoje. Respirou fundo e disse, sem interesse:
- O seu cliente deixou um recado para você “ Diga ao meu velho amigo Jeremias que gostei muito de sua loja, nunca vi nada assim em Cupim”.

Jeremias sentou-se num dos bancos que os clientes sentavam para provar os sapatos e viu observando seus sapatos marrons no espelho a frente enquanto tocava sua testa.

Deste dia em diante as dores de cabeça nunca mais cessaram.



Fim




Você está saindo de Zona Crepuscular preste atenção em estranhos odores adocicados e vultos que insistem em aparecer, porque aqui; aqui há dragões