terça-feira, 18 de dezembro de 2007

E se o Mundo todo ficasse misteriosamente insensível?









Zona Crepuscular localizou um velho texto e pergunta: O egoísmo destruirá todos os seres que dele se alimentam?


Zona Crepuscular – acesse contos inesperados que ocorrem na hora mágica... nem dia, nem noite.


Neste post você ficará pensativo com “Mortificação”:


Desde o velho Scrooge não surgia ser assim tão dono de si e ciente executante de seus atributos e potencialidades – e ali estava eu, anjo caído em desgraça: escárnio de anjos, demônios e de humanos também; a quem apelar? Por quê apelar?
Apelei justo a quem não devia, um igual entre os viventes, espelho refletido, luz vertida em negro, trevas tão densas, cabíveis de se tornarem vestimenta – um delicioso vazio para o outro, um trono brilhante para o “eu”, um ego com toda uma vida para se aperfeiçoar na arte da vaidade e do “eu-centrismo”. Pois bem, a este apelei...

- Veja infante, não é de penalizar a situação que me encontro? Não te mortifica o coração, não compadece a tua alma minha miséria?
A voz trovejou um “NÃO”, me calei por um momento e prossegui:
- Observa jovem, o tempo urge, escorre entre nossos dedos, você não fica condoído, entristecido, pesaroso e alquebrado com a miséria que me enlaçou? Responda!

Uma voz fortalecida pelas passagens da água pela Clepsidra, uma voz juvenil, retumbante, forjada em vitórias inconseqüentes e pueris fez ecoar uma única palavra:
- NÃO!

Todo meu padecer era inútil, aquele ser parecia incapaz de se compadecer, de se entreter com meu sofrimento, de dividir comigo o fardo de fel que me oprimia, desistir não!

Segui o ser por todo o caminho, ouvi histórias, vi seus passos deixarem marcas no asfalto frio, observei, compreendi e investi decidido:

- Medita adulto, o tempo e a morte o disputam dia a dia, tramando levá-lo, só eu sei o que tenho escutado, mas como ajudá-lo no dia do seu sofrimento se vira os olhos frios para meu infortúnio; será que não pode comover-se, se sentir constrangido, compungido, sensibilizado para meu sofrer – os anos passam e a calamidade me devora a alma dias sem fim.
O “NÃO” soou forte, voz forjada nas vitórias sem fim e na autoconfiança independente de tudo e todos, empatia aparente, apatia reticente, crítica, desejando que cada ilha derive para seu continente por si, sem logística, sem suporte, sem apoio, sem facilidades, porto seguro ou ombro amigo; ninguém é inocente, ninguém merece dó – este era o discurso oculto naquele “NÃO” seco e olhar de canto de olho, olhar apressado de pessoa entregue a mil afazeres, mil recados, mil pecados. “NÃO” e ponto final.

Aquilo realmente conturbou meu coração, bati minha única asa, sentindo uma dor terrível – o coto da outra asa arranhava por baixo da manta pesada, me fazia falta ter ambas asas e trazia dor extrema quando só recordando ter uma asa só! E o único a quem desabafar surdo a meus apelos, ano a ano. Ninguém a se comover com minhas mazelas, ninguém a se compadecer, ninguém disposto a mover seu coração a minha causa, meu fado que de tal forma atrai. Ninguém que se sensibilize.

“Lá vem os anjos, melhor me afastar...”

Vi que o ser caminhava, casava, crescia, envelhecia e por fim, em seu leito de morte, só, sem ninguém, nem os netos, nenhum espírito de natal passado, nada, nem ninguém. Agora só ele, eu, uma enfermeira ocasional e a sombra da morte que sorria para nós zombeteira com seu agulhão, matreira, realizada, preparada para arrastar com seus grilhões “quem quer, quando quer” guiada pela mão do Divino – o Senhor de todas coisas, devo confessar, tremo de pensar.

Então era isto – a Morte daria seu abraço mortal naquele que não cabia no mundo; mas que agora dependia de estranhos até para andar – no bizarro e solitário mundo de seu quarto de enfermaria, dividindo dores, gritos agudos e lamúrias com estranhos, indiferentes ao seu sofrimento; centrados em sua própria dor, alheios as necessidades de terceiros.

Quis estender minha mão, quis compartilhar, quis mostrar meus sentimentos, minha compaixão e contrição – mas a misericórdia não habita meu coração, meu coração não habita minha alma, minha alma não habita meu ser e meu ser, enfim, é indiferente a dor alheia.
Na minha vingança, perde ele, perco eu...





Fim, por enquanto...



Você esta deixando a Zona Crepuscular...caminhou tranqüilamente por esta leitura ou a achou complexa? Talvez...Mas, se você prestar atenção, os anos passam e tendem a nos endurecer, a nos isolar (ou somos nós que nos isolamos?) - não deixe o sabor de sua vida escapar, não endureça seu coração continuamente, não fique indiferente a dor alheia; amanhã pode ser diferente, alguém ou algo pode te tomar esta rotina que te faz acreditar que você se basta em si mesmo e você começara a clamar: Senhor, Piedade, Senhor, Piedade!

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Zona Crepuscular suplica: Você tem um rosto para mim?








Zona Crepuscular denuncia: Cada vez mais pessoas estão perdendo seu rosto e você; também perdeu o seu alguma vez?



Zona Crepuscular – acesse contos inesperados que ocorrem na hora mágica... nem dia, nem noite.



Neste post você mergulhará no conto “Um rosto para mim”:


Perder o rosto?
Ora, perder o rosto é a coisa mais banal do mundo, quem já não perdeu o seu? Mas geralmente a pessoa o reencontra em poucos dias. Ele não vai muito longe não. Mas, como deve perceber, este não foi meu caso.

O engraçado é que não me lembro bem o dia que o perdi já são tantos dias sem ele. A minha sorte e azar é que as pessoas não parecem se preocupar com o homem sem rosto são vistos normalmente circulando pela cidade e cada um tem seus próprios problemas para dar atenção e, no final das contas, é temporário, todo mundo sem exceção encontra o seu rosto novamente, mais dia, menos dia. Bem, acho que podem me chamar pelo meu novo nome: Exceção!

Devo ter perdido meu rosto num dia frio e chuvoso no início do inverno e já se passaram tantos dias chuvosos desde então, nem fico triste em lidar com os dias nebulosos; minha obsessão é com o fato de eu não ter mais rosto, de não me recordar de como era antes. Engraçado é que dá para ver, ouvir, falar, cheirar e sentir, mas sem rosto...não, não é engraçado. Nunca fui fã de fotografias, filmagens, caricaturas, fotolog e agora percebo o mal que fiz. Agora sem rosto tomei algumas resoluções necessárias, invadi a casa de minha mãe e furtei uma velha foto de criança – aquele era eu? – digamos que a foto pertence a um passado e meu rosto não era bolachudo como fora no passado – disto eu me lembrava, ou não? Joguei a foto num canto da sala e me senti angustiado por muitos dias. Seria sem rosto para sempre? No-face?
Pensei em novas soluções para minha pequena tragédia pessoal...
Vendem máscaras na cidade, só que não vendem para quem não tem rosto, tentei comprar ou furtar uma - minha ética estava em suspenso pelo que pode perceber - na Praça Benedito Calixto em Pinheiros onde existe uma feira de antiguidades, arte e curiosidades, mas sem sucesso – no fim, achei a idéia de furto humilhante, o problema não era dinheiro, mas orgulho. Abortei a idéia, afinal a graça de usar máscara é ter um rosto por baixo e isto eu não tinha.
Pintar um rosto? Fora de cogitação, afinal eu tinha o meu, perdido em algum lugar nesta cidade – só espero que não tenha virado item de exportação ou sido enviado ilegalmente para outro país.

Sabe, existem vantagens em não ter rosto, afinal agora não posso ser desfigurado, também posso observar as pessoas sem ser visto ou reconhecido. Alguns dias atrás pensei em fazer amizade com outro sem-face, ou no-face como eu os chamava secretamente, mas imagine-se sentado na mesa de um bar e conversando com alguém que você não pode fazer a leitura facial e labial; as frases são gélidas, impessoais e, por vezes, desconectadas – você já deve ter se sentido assim conversando com algumas pessoas no telefone ou aparelho celular. E o pior, o tema da conversa seria único, estamos sem rosto, quando recuperamos o rosto – perdemos o rosto, quando acharemos o rosto e blá, blá, blá. Um horrível, samba de uma nota só. “Recuperar o rosto e voltar a ser alguém”. Creio que minha teoria de amizade entre no-faces é perturbadora – é assustador ouvir uma voz e não ver lábios se mexendo, pior que a dublagem brasileira de certos filmes e novelas mexicanas. O estranhamento assusta.

Como começamos a perder o rosto? Não se sabe ao certo, mas acho que a doença – se é que posso chamar assim – começou nos trens municipais de São Paulo. Pessoas que se conheciam pararam de se cumprimentar, cansadas, sonolentas, estressadas, inconseqüentes; pessoas que choravam por um motivo qualquer passaram a ser sistematicamente ignoradas e logo com o desenvolver desta indiferença cotidiana começaram a surgir os sem-face, sempre num número pequeno, mas contínuo e constante. Alguns dizem a meia-voz que estão aumentando, uma praga, uma maldição, um vírus. Talvez seja uma ponta de iceberg, afinal outros podem estar nesta condição permanente como eu; um novo fenômeno surgido são aqueles que tem face e se consideram no-face devido à solidão e a vida anônima que levam hoje nos grandes centros urbanos. Solitários, pagando sua conta da água, de luz, morando em grandes apartamentos e esperando ansiosamente que o cachorrinho ou gato de estimação passe a falar. No campo não é muito diferente. O engraçado é que os sem-face não são motivos de reportagem onde quer que seja, nem tevê, nem rádio, nem jornais, nem youtube, nem nada. Há um pacto silencioso no mundo quanto a esta realidade como há em relação a diversas outras feridas que vemos por aí. Se porventura um sem-face aparece numa transmissão ou numa foto de algum evento, logo editam, apagam, atrasam transmissão ou creditam tal aparição à falha de equipamento, orbes, condição atmosférica ou de luz inapropriada, poeira suspensa ou desconsideram o fato e pronto. Sei de tudo isto, sinto na carne!

Os Sem-face não existem e eu, como muitos, os ignorava por completo, como uma curiosidade que não desperta interesse profundo ou como algo contagioso a se evitar. Bem, agora não dá para ignorar já que eu faço parte das fileiras deste grupo tão estranho e desprezado. Só tenho agora uma certeza, tenho o superpoder mais maldito do planeta, INVISIBILIDADE!

Você tem um rosto para mim?



Fim, por enquanto...



Você esta deixando a Zona Crepuscular, tudo bem? Concluiu esta leitura? Levanta um pouco, dê uma volta, respira fundo, ligue para um amigo, uma amiga e pergunte “como quem não quer nada” se o mundo ainda está nos eixos; se não há pessoas sem face circulando em seu bairro – e aproveite e vá ao banheiro verificar algo no espelho, só por garantia!

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Zona Crepuscular quer saber: Que fim você dá a seus documentos e velhas fotos?










Zona Crepuscular – acesse contos inesperados que ocorrem na hora mágica... nem dia, nem noite.



Neste post você se perturbara com um conto na Selva Urbana:





Existem regiões e pessoas que pensam estar numa selva urbana e agem como se estivessem. (Regiões não pensam? Vai ao meu bairro e vê como todo mundo parece se sentir na obrigação de agir igualzinho e quando você vai para outro estado e logo está falando do mesmo jeito – deve ser a água...) Bem, os mínimos padrões de moral, decência e ética escoam pelo ralo das más intenções e a prática é renegar os dez mandamentos e abraçar de corpo e alma os sete pecados capitais chegando a um ponto de inconsciência que beira a total falta de consciência. A partir daí, tais regiões e pessoas podem ser guiadas, manipuladas para realizar atos e desenvolver padrões culturais que beiram o absurdo. Existem pessoas e locais assim, nós da Zona Crepuscular sabemos.

Joe era assim, conheçamos este curioso homem:

Num lixão qualquer, um dia destes de sol.

- O que você está fazendo aí rapaz?
Joe olhou ao redor e rasgou outro saco, um cheiro podre subiu e logo Joe o jogou de canto e pegou outro cheio de papéis.
- Tô procurando umas coisas que me pediram. Hum olha aqui, fotos, achei mais algumas.
Começou a descartar as manchadas, rasgadas, umas sim, outras não.
- Como você sabe quais importam e quais não?
- Tenho umas dicas, este aqui ó, faleceu esta semana, esta aqui ó, tá viva; mas no que depender de mim, por pouco tempo.
Um silêncio, uma pergunta:
- Como assim, Joe?
Passou para outro monte de lixo, um menino caminhou em sua direção. Joe observou como o garoto era estranho, dava uns pulos e abria os braços saltando entre os monturos de entulho – parecia um urubu.
Correu para longe do garoto, não queria contato. Tinha uma missão.
- Garoto estranho, né Joe?
Joe concordou:
- Garoto urubu...Ó, mais fotos, esta não, esta não, esta não, este morto, esta morta, esta manchada, esta com endereço, esta sem. Nenhuma aqui, droga...
Escurecia...
- Joe, olha dinheiro ali, pega!
Joe nem se virou, continuou sua busca.
- Joe, já não achou as fotos necessárias?
Joe parecia tenso.Esbravejou:
- Não, não, não, faltam duas, não me atrapalhe. Deixa-me abrir este. Um momento.

Vapores subiram, metano, azedo, podre – cambaleou tonto, agarrou a dezena de fotos que separara com seus dedos sujos e engordurados, tossiu, a vista embaçou. Abriu o saco com a mão livre, só papéis velhos, notas fiscais, poemas, alguns desenhos e livros antigos. Uma edição em capa dura francesa do ano de 1919 da Volta ao Mundo em 80 dias largada com papéis velhos. Achou um livro manuscrito curioso:
“A Verdadeira-verdadeira história do Presidente Lula”, jogou de lado.
A lua surgiu - horas depois concluiu sua busca.
- E então?
Joe sorriu roto e careca.
- Este grupo me deu um motivo para viver (mostrou as fotos). Segundo “Eles” só basta achar estas pessoas na cidade.
- Péraí, péra, péra, espera aí, quem são “Eles” querido amigo Joe?
Joe deu um sorriso sombrio.
- Ora, “Eles” são aqueles que me falam aqui, ó, dentro da minha cabeça, “Eles” vão me ajudar, só tenho que cumprir esta pequena missão. Achá-los e tirá-los desta vida, só basta encontrá-los, É fácil, eu ando bastante (sou mais um andarilho de Sampa afinal), ando por aqui, ando por ali, logo topo com eles – foto por foto. Já tenho até um pouco de cordão aqui e um arame e , ó, tá vendo, tô costurando as fotos na minha blusa para não esquecer, uma foto aqui, outra no ombro, esta garota no peito, este cara na manga, mais estas no peito e na barriga. Pronto! Meu painel ao alcance da minha vista para decorar, consultar e fazer uso e para eu não hesitar. Minha missão mais que possível – depois de tantos anos uma nova chance, é só fazer conforme “Eles” explicaram, sem medo, sem vacilo.
Joe sorriu enquanto apreciava as fotos em seu peito, abdômen e braços.
- Bom, bom, muito bom. Está valendo a partir deste momento. Bem companheiro agora eu preciso ir, sabe, eu tenho uma missão, rêrê, missãããão, missão. TCHAUUU! gritou.

- Hey, aquele maluco está se despedindo de quem?
O homem olhou Joe se afastando do lixão e deu de ombros.
- Ah, o Joe ali? O Joe não é nenhum exemplo de sanidade e já faz tempo. Faz dias que esta ali, sozinho, fuçando o lixo, mas não esta atrás nem de comida, nem de latinhas para reciclagem. Fica falando sozinho horas e horas e pegando papéis.
- Olhe ele encheu sua camisa de papel velho, colou ou costurou não?
- É, costurou – daqui parecem fotos, sei lá. Tá curioso, vai lá perguntar! Acho que ele esta “gira”, pinel, doidinho. Já vai tarde, dizem que ele era advogado aí rolou alguma coisa com sua mulher. Ahhh Joe, Joe...
- Óia, um pedaço de pizza inteiro, muzarella, quer?
- Dá um pedaço aqui! Ah, isto é que é vida, hummm...

Jardins – São Paulo:
- Aonde você vai? perguntou a mulher fatal para seu acompanhante...
O homem fez uma careta:
- Esqueci o paletó no restaurante, espera no carro, volto rápido.
Joe observou o homem voltando, largou sua carroça, os três cães dormiam em seu interior. Agora tinha certeza que era o homem da foto próxima do seu umbigo – aquele olhar frio e aquele discurso de a pouco combinavam com a foto, como foi que dissera quando passou por Joe “ Querida, é puro darwinismo social, a lei do mais apto, quem não pode vai pra periferia , é marginal, usa pedras de crack em vez de ecstasy, nunca vai ter o emprego que tenho, nunca vai ser como sou ou ter uma garota como você – vê ali, em que mundo este carroceiro e aqueles pulguentos teriam aquele carro prata e uma mulher como você neste vestido negro maravilhoso? Vamos, Darwin sabe o que faz...” Ptuh!
E Joe não ouviu o resto, parecia e era a cara da foto em seu umbigo, pronto! E o pior, tratando-o como um invisível, se jactando de algo tão sem sentido. Darwinismo social? Ora bolas, este paralelepípedo embrulhado neste saco preto ia colocar as idéias do rapaz sobre a lei do mais apto num patamar mais achatado, É na pedrada mesmo com estes tipos.
“Lá vem ele...calma Joe, é seu primeiro, faça direito...”
- Hey loiro! Joe se colocou na frente do rapaz e o parou. Sorriu friamente segurando o pedregulho sem dificuldade e gritou:
- Para você sou um carroceiro, um mendigo, mas saiba que sou formado, tenho Oab e como advogado sempre venci. Adeus!
A seqüência foi rápida, o grito abafado pelo pedregulho, a garota saindo do carro e encontrando o namorado caído na calçada. Seus gritos encheram a região dos Jardins de pânico, carros pararam na rua Oscar Freire e na alameda Lorena para acudi-la – mas para seu namorado era tarde.

Joe puxou sua carroça de duas rodas Alameda Lorena abaixo com cuidado pois não queria acordar seus cães “encaixa a lei do mais apto no pedrão em seu peito agora rapah, essa eu quero ver, carroceiro iletrado...bah, uma profissão como outra qualquer...bem Joe, agora começou, respira fundo, a ponte caiu e tem que avançar, ah, mas eu vou, adiante!”

Com estes pensamentos Joe desapareceu na noite sacudindo a cabeça irritado, pois "Eles" o advertiam agora para não falar mais com nenhuma das pessoas das fotos novamente caso contrário a missão falharia e Joe não queria isto - as pessoas não se envolviam com ele e também ele não deveria se envolver. "Vou tentar, vou tentar; tá! tá, vou fazer!". Rumou para a região da Avenida República do Líbano. Amanhã andaria pelo bairro de Moema, um palpite. Dormiu próximo do Parque Ibirapuera, o som dos carros não dava mais insônia em Joe.

O policial observou o corpo estendido e a bela garota de vestidinho negro que tremia, pois apesar de alta madrugada, a mesma não queria sair do lado do corpo. O oficial abaixou-se e pegou uma foto largada ao lado do corpo. Uma foto do rapaz dobrada de forma a esconder a pessoa que estava ao lado dele. Uma linda ruiva. A garota viu a foto na mão do policial e voltou a chorar e a balbuciar:
- Esta foto, ele, ele, jogou fora faz uma semana, o que faz aí? Não tem sentido, é de uma ex-namorada dele. Combinamos que jogaríamos fora nossas fotos antigas, todas! Isto foi um pacto, Não, não, não...
O policial se comoveu com a bela mulher:
- Calma dona, tenha paciência, já vamos levá-la daqui. Sinto muito mesmo por esta barbaridade, você não merece passar por isto. o policial colocou a foto no peito amassado do rapaz, talvez tivesse alguma ligação, talvez não. Isto quem avaliaria seria a polícia científica.

Dias depois, uma garota foi encontrada numa caçamba de entulhos em Moema perto da Alameda Tupininquins, uma foto velha e suja dela junto ao corpo. Foto que, junto com outros documentos antigos, a mãe havia jogado fora há um mês.
Um repórter policial ligou os fatos após investigar os casos dos Jardins e Moema e de algumas perguntas para alguns policiais. Logo teve um laivo de genialidade e apelidou o “novo serial de São Paulo” de “Assassino da Foto” – e passou a sonhar com o próximo Troféu Imprensa ou uma destas premiações que pipocam pelo Brasil; pena não estar nos Estados Unidos, pois poderia ganhar um Pulitzer, quem mandou nascer no Brasil? Paciência.

Joe cantarolava uma música de Elizeth Cardoso, ouvira quando jovem no Municipal do Rio de Janeiro, a cidadã negra de voz maravilhosa que encantou a tantos, bossa-nova, bossa-nova, vossa bossa. Estava feliz, sentia o peito mais leve graças ao descarte de três fotos.
Seguia com sua carroça para o bairro Jardim São Luis, “Eles” haviam dado uma nova dica quente. Tudo corria bem – no prazo, no prazo, petição no prazo, no prazo, no prazo. Cãezinhos bons, trouxeram uma lingüiça para ele. Gostosaaaa.

- Deise, deixa eu falar, por favor!
A garota o observava com ódio no portão de sua casa no Jardim São Luis.
- Nós já terminamos Nei, acabou e não quero mais falar com você. Já sofri o bastante.
O rapaz, angustiado, implorou:
- As nossas fotos...
- Nei, eu já disse, as joguei no lixo, o caminhão de lixo levou, se quiser recuperá-las vá no depósito de lixo!
Nei ficou bravo e gritou:
- Menina, já entendi. Acabou, acabou. Só me explica porquê nossas fotos estão costuradas na blusa de um mendigo que eu vi em nosso bairro ontem Deise!
Deise ficou perplexa, “como assim?”.
- Eu estava chegando em casa e minha irmã estava enxotando o mendigo que queria latas de refrigerante, pets ou algo assim.
Deise cortou a fala de Nei:
- Típico de sua família, gritar e gritar e quando não tiver mais argumento, gritar mais ainda!
- Tá, tá Deise, deixa-me continuar – então ele passou por mim e vi várias fotos costuradas em sua blusa, espalhadas por toda ela e num canto e outro vi uma foto minha e outra sua. Mas, o pior, foi o olhar que ele me deu, pareceu me reconhecer. Resolvi não parar em casa, sorte que minha irmã não me viu...
Deise cortou novamente com desprezo.
- Ou seria aquela gritaria e baixaria que todos conhecemos.
Nei ficou irritado e a custo manteve o tom calmo de voz.
- Que seja...bem, ele tentou me seguir, mas o despistei no escadão do gordo e desapareci numas vielas. Mas isto é suspeito, como ele conseguiu aquelas fotos – e o pior Deise – o bairro todo vai ver você...sabe...a foto é aquela “artística” meio reveladora, se você recorda.
Deise ficou rubra:
- É sua culpa, como sou idiota, pode recuperar aquela foto agora! Se meus pais descobrem. Em que palhaçada você nos meteu, mais esta. Nei, meu pai é policial, se vira Nei! Onde eu estava com a cabeça, onde, onde? Péraí, meu telefone está tocando, Nívia, tudo bem? Claro! O quê, minha foto no peito de um morador de rua? E parecia que eu estava como? Não brincaaaa! Deixa para lá, você deve estar enganada.
Deise começou a chorar baixinho “Tchau amiga!”
Nei desconfortável tentou justificar o injustificável.
- Pô Deise, aquelas fotos seriam para montar o seu “book” de apresentação para levarmos para as agências de modelos. Você não devia ter jogado fora só porque nós terminamos; bem, no mínimo, você deveria tê-las destruído.
Deise entre lágrimas se defendeu:
Você me iludiu, eu me iludi, agora percebo tudo e esta situação torna tudo pior. Se esta foto não estiver em minhas mãos hoje, você vai se justificar com papai. Eu juro! deu as costas a Nei, entrou correndo e bateu o portão. Lá de dentro uivos, um choro amargurado e cheio de soluços e engasgos chegou até Nei que permaneceu na calçada – coçou a cabeça, olhou para o céu ensolarado através de um filtro negro pessoal e intimamente se amaldiçoou por ter se envolvido com a filha de um policial. “-Burro, burro, burro!” respirou fundo e correu até a casa da Nívia pois precisava saber onde encontrar aquele negão carroceiro para recuperar as fotos ou, pelo menos, a foto da Deise de busto em preto e branco. Que roubada, será que melhora?

Joe sentado numa calçada comia um marmitex doado por uma caridosa senhora, tinha arroz, frango, feijão e farofa apimentada. Uma delícia, pensou.
Os cachorros brigavam pelos ossinhos de frango que ele lançava de momento em momento. Precisava achar o rapaz e agora tinha uma suspeita de que a garota na foto artística estava muito perto também.
A suspeita veio de uma situação e não foi dica “d’Eles” desta vez; uma moreninha tinha dito horas antes quando o abordou: “nossa, que fotos legais penduradas que nem quadros, espera, não mordo moço, é mais fácil teus cachorros me morderem – esta é legal, esta também, para de se mexer um pouco, por favor. Uauuu, parece alguém que conheço!” Joe olhou nos olhos da menina de forma interessada:
- Qual? Esta aqui, da garota, em preto e branco?
A menina desconversou frente ao súbito interesse e logo arrumou uma desculpa para ir embora:
- Talvez, hora de ir, escola, sabe? Um abraço seu moço. Cachorros lindos, bonzinhos, você que tingiu aquele de verde? Fui! E saiu correndo. Joe a seguiu com os olhos e viu a mesma virar numa pracinha; deu as sobras para os cachorros e correu (que comeram rapidamente e seguiram o dono que largara a carroça e a eles). Joe não podia perder aquela garota de vista. A missão, a missão “Eles” viviam dia e noite a lembrá-lo, martelando na sua cabeça – mantra, mantra, mantra, mata, mata!

Foi tudo rápido, Nei passou na casa da Nívia achando-a na frente de sua casa e ela falou que vira o mendigo próximo da pracinha do bairro poucos minutos antes. Nei pegou um pedaço de madeira em forma de bastão caído na rua e correu em direção a pracinha. Joe estava correndo em sua direção, à distância cachorros e carros passando na avenida movimentada. Nei respirou fundo e gritou com Joe que, desconcertado, quase não o reconheceu. Mas era uma das fotos, vivinha ali, esperando-o com um pedaço de pau na mão. Muito movimento na rua, Joe ficou indeciso enquanto observava o rapaz ameaçá-lo e ruminar que “queria as fotos, quero as fotos, me dá as fotos ou te bato, bandido, maldito, lixeiro, trombadão, as fotos, as fotos e balançava o bastão furioso próximo a cabeça de Joe. Os cães se aproximaram silenciosamente e vendo o garoto ameaçar Joe partiram para cima do rapaz, os três ao mesmo tempo. Um pitbull, um rotweiller e um vira-lata tingido de verde mas tão feroz quanto os outros dois. Nei, num ato de desespero, correu e saltou para a avenida e foi colhido por um ônibus sendo jogado de volta a pracinha. E Nei, onde caiu, ficou, gemendo com dores terríveis. Joe se aproximou, seguido pelos três cães, agora calmos e balançando os rabos para Joe que os adotara – odiava pessoas que adquiriam cachorros da moda e depois os abandonavam. Ficou com os três.
- Pois é rapaz, queria as fotos não? Vai ganhar pelo menos a sua, tá aqui. Se aprecie bastante voyer, enquanto ainda pode – e se foi com os cães, de volta para sua carroça. Agora faltava descobrir a garota da foto e iria para outro bairro, Capão Redondo.
- Socorro, gritava e gemia Nei, pois não conseguia se mexer.
Dois rapazes chegaram numa moto, se aproximaram rapidamente de Nei, desceram da moto e se agacharam ao seu lado:
- Tudo bem “velho”? Creio que não; fica calmo que a ajuda vai chegar, dá aqui a carteira – não se mexe muito não pois vai sangrar mais rápido.
O outro sussurrou olhando ao redor:
- Pega logo o telefone celular dele, istoooo, é maneiro né?
Levantaram-se deixando Nei caído e um deles gritou para as pessoas que chegavam e para o motorista do ônibus que parara um pouco adiante após o acidente:
- Ele não consegue se mexer, alguém chame uma ambulância, um resgate, sei lá, chama o Bozo, o Dino, o Lula!
Subiram na moto e gritaram a uma voz para Nei:
- Melhoras aí, maninho!!!
O socorro verdadeiro chegou minutos depois, mas era tarde para Nei...

Deise contou a noite para o pai de sua “foto perdida” que agora grudada no peito de um morador de rua estava zanzando pelo bairro a vista de todos. Logo o pai da garota mobilizou seus companheiros. Carros policiais vasculharam o bairro, uma aposta paralela se formou entre os policiais (sem que o pai de Deise soubesse) ganhava um almoço quem primeiro achasse a “foto artística” da filha do certinho cabo Zé. Ninguém ganhou, pois foi o cabo Zé e um companheiro que acharam Joe de madrugada se aquecendo numa fogueira feita numa montanhazinha de terra que era abastecida com ripas e tocos de árvores surrupiados de uma pizzaria.
Joe descobriu uma coisa inesperada - que os “invisíveis“ da sociedade ainda podem sentir dor física, além de toda a dor emocional de ter se desligado da vida social e de todos, num ostracismo voluntário, regado a álcool. Os dois policiais bateram com cassetetes por longos minutos, como a chicoteá-lo – os outros mendigos olharam em silêncio – os cães estavam longe, perseguindo uma cadela. Joe se sentiu novamente como se sentira no dia da traição de sua esposa, como no dia da falência no escritório de advocacia e no enterro de sua mãe: absoluta e miseravelmente só. Sozinho com seus hematomas, sozinho com seus dramas, sozinho com suas tristezas, sozinho com suas vozes.
Arrancaram a camisa com as fotos de seu corpo, rasgando-a.
- To Zé, achai a foto de sua filha. E você vagabundo, quietoaí, não terminamos ainda. Tô cansado. Disse o policial negro de olhar fuzilante.
- Aqui, achei. Droga de foto – picou a foto e jogou na montanha de fogo de Joe, também jogou a camisa suja e ensebada com as fotos restantes que viraram cinzas instantaneamente. “Eles” gritaram caoticamente dentro de Joe, mas não podia fazer nada, o policial se agachou do lado de Joe e de arma em punho ameaçou.
- Companheiro, já é suficiente lidar com a bandidagem da área aqui; lunáticos como você tem de sobra, não ligo. Só que hoje eu abro uma exceção para você. (Deu uma coronhada no pé de Joe que gemeu baixinho...) – Tem...peraí, meus amigos chegaram, agora ficou bom, levanta vagabundo!
Joe tremendo, só de calça, descamisado e descalço se ergueu, o pé latejava, mas seu suplício seguia – logo foi cercado por uns oito policiais:
- É este aí cabo Zé e a foto cadê, esta com ele ainda?
- É este malandro sim, já peguei a foto e queimei!
Com a confirmação do cabo Zé ouviu-se um “Ah, que pena!”
O cabo Zé olhou todos com uma certa estranheza em relação ao comentário, mas seguiu com o roteiro em sua cabeça:
- Qual teu nome palhaço?
Joe observou todos, juízes, carrascos e executores, criou coragem e falou:
- Doutor Joelson Figueirah e Sáh.
O policial fez um muxoxo e o algemou - uns risinhos ao redor de Joe se fizeram ouvir enquanto três cães felizes chegavam e se alinhavam ao lado do dono. O policial prosseguiu:
- Bem doutor, todos nós já sabemos como é sua cara e, inclusive, meu amigo ali acabou de tirar uma foto sua na câmera do telefone celular dele. Você vai sair desta cidade agora, entra no carro ali agora e meu pessoal vai levar você para longe e não queremos nunca mais vê-lo e esta bagunça toda termina aqui!
Joe ficou sem entender (um silêncio enorme em sua cabeça) olhando aqueles rostos vorazes que o cercavam. Tentou contra-argumentar:
- E minha carroça ali, meus cachorros, meus pertences, minha missão, “Eles” não vão gostar...
Tomou um empurrão que o colocou cambaleante a andar na direção da viatura policial (os cães seguiam quietos, pesarosos pelo companheiro, algo não certo estava ocorrendo), Joe voltara a ser um “invisível”, pois ninguém mais voltou a falar com ele, nem “Eles” que moravam em sua cabeça falavam, estava sendo censurado – só contrariedade fora e dentro de sua cabeça. Entrou no carro e chorou em silêncio, as primeiras lágrimas em muitos e muitos anos.

Foi largado numa estrada rumo a Curitiba. Dois tiros para o alto o fizeram correr para longe de São Paulo – mas as fotos, ahh, as fotos Joe memorizara; afinal ninguém pode viver sem objetivos, ninguém pode abrir mão de uma missão nesta selva urbana!
“Correr, correr e por um objetivo matar e viver!”.





Fim...por enquanto...



Você está deixando a Zona Crepuscular neste momento, mas isto não significa que não há pessoas fuçando seus dados, xeretando seu orkut, ligando de madrugada para saber se você está em casa ou abrindo seu lixo procurando algo...algo que você nunca deveria ter deixado lá...enganoso é o coração do homem, pense nisto e até o próximo conto.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

ZONA CREPUSCULAR QUER SABER DE VOCÊ: O CINZA JÁ TE DERROTOU?




Zona Crepuscular – acesse contos inesperados que ocorrem na hora mágica... nem dia, nem noite.

Neste post você viajará no conto:



KADIZ QUANTA

Era uma vez um rapaz de blusa amarela que se aproximou de uma rodinha de amigos no intervalo do curso; na época poucos o conheciam e depois disto não foi diferente:

- Dia cinzento não?
- É esta garoa chata, disse uma garota.
- Cheio de prédios não ajuda, disse outro aluno.
- Por mim tanto faz, disse outro garoto de canto – com olhar distante.

O rapaz de blusa amarela apontou o dedo para um ponto além do grupo mordendo o lábio inferior sorriu, chamando a atenção do grupo.
- Ora, o mundo é conforme o percebemos; se olharem com atenção verão borboletas, ali, ali, lá, laranjas, negras, bicolores – viram? Lindo! Não? Hehe...

As borboletas surgiram suspensas no ar, alçaram vôo preguiçoso, em várias direções diante do olhar espantado do grupo. Uma pousou no ombro a mostra de uma morena, era real, logo se foi e desapareceu ante olhares agora deslumbrados.
- Garoto, garoto, que foi isto?
Ele deu de ombros e partiu gargalhando, era o último dia do curso, as borboletas eram um presente para uma das garotas no grupo e uma forma de mostrar o belo sorrindo para o cinza carrancudo da vida de todos que ali estavam. Nunca mais o viram...

A vida de Kadiz seguiu adiante:

Era uma vez um estagiário que olhava da janela do prédio em que trabalhava para o trânsito na rua, motos, carros, pessoas serelepes, fumaça, corre-corre. Pessoas chorando na rua em silêncio. O estagiário torceu o rosto para tudo aquilo.
- Já conseguiu concluir o relatório Kadiz?
Torcendo o rosto mais uma vez, disse que não. O supervisor se foi, além do estagiário tinha mais uma lista de pessoas a cobrar alguma coisa, seu hobbie, seu esporte, sua motivação de vida.

Kadiz concluiu o relatório, levantou pegou a “plaquinha de banheiro” na porta da sala e foi tomar café na copa, sorriu para a recepcionista enquanto passava,
- Bonita esta margarida em sua mesa, é dia da secretária, por acaso?
A moça soltou um “ahh” ao ver a bela margarida pálida e amarela com caule verdíssimo que brotava de sua mesa de cedro como que plantada ao lado do telefone. Um odor delicioso emanava da flor, espalhando-se suavemente pelo ambiente.
O rapaz se foi para a copa e a recepcionista correu até o gerente para mostrar o inexplicável. O gerente voltou com o supervisor e a recepcionista.
- Cheiro de flor tem, mas, cadê?
A recepcionista murmurou, ué?
- Kadiz, você viu a flor na mesa, brotando da madeira, não viu?
O estagiário voltava com seu café, assoprando.
- Vi sim, era linda! Talvez alguém a tenha retirado, sei lá e sorriu.
O supervisor fez um muxoxo de desprezo e soltou um “sei...” gélido e completou:
- O relatório Kadiz, o relatório. Vida que segue...

Era uma vez um jovem que passeava no centro da cidade de São Paulo...
- Filho, que calor horrível, já me arrependi de vir para o centro.
Kadiz sorriu e beijou a mãe no rosto.
- Não se preocupe, quando virarmos a esquina haverá uma fonte central com jatos de água que espirram e se espalham refrescando e faremos compras na rua mais arborizada, verde e com sombras do centro.
_ Ah filho, você não deve estar falando da rua Santa Ifigênia, quer um suco de laranja? Sabe...a voz cessou quando chegaram a rua cinza e tumultuada e atônita a mãe sorriu, pois a rua era deliciosa, com bancos para descansar conforme o filho falara, pássaros azuis e amarelos trinados e barulho de água. Uma bela cena!
- Nossa Kadiz, fizeram isto quando? Esta rua sempre foi tão sem vida...
Kadiz sorriu enigmático.
- Fizeram hoje de madrugada mãe, ficou lindo, não acha?
Os comerciantes e transeuntes pareciam desconcertados entre felizes e confusos podia dizer!

Era uma vez um casal de namorados e um presente especial:

O jovem adulto sorriu para a namorada, estavam na laje de sua casa, havia acabado a eletricidade no bairro, um apagão destes que o governo prevê, mas não faz nada para evitar a não ser falar da fatalidade da falta de investimentos, etc etc.
- Creio que logo a eletricidade volta e a luz também, mas olha que céu estrelado lindo não? Sabia que no interior e afastado das grandes cidades ele brilha ainda mais e são tantas e tantas estrelas que não vemos por estar aqui na cidade?
Passou o braço pelo ombro ajuntando a namorada que se aconchegou no seu peito. Sussurrou no ouvido dela:
- Nas noites escuras, os vaga-lumes saem de seus esconderijos para mostrar como as criações de Deus são belas e bailam na frente de todos aqueles que tem olhos poéticos e disposição para amar.
Acariciando o rosto do namorado soltou um “é verdade, Kadiz?”.
Ao mesmo tempo, pontos brilhantes amarelos e verdes foram surgindo, pairando ao longe, se afastando, se aproximando e realizando intrincados movimentos, sem nunca tocar o casal, sem nunca repetir os mesmos vôos, brilhos verdes, amarelos piscantes e leves zumbidos. Logo se apagaram e sumiram, o casal acendeu e se beijou apaixonadamente e aquela noite jamais foi esquecida. Não foi um brilho fugaz.

Era uma vez, um momento de tensão...

Madrugada num cruzamento com farol fechado no bairro do Morumbi em São Paulo.
Os bandidos apontavam armas para Kadiz num misto de ódio, nervosismo e urgência.
- Desce logo do carro ou morre. Vai rapah!!
Kadiz desceu do carro, tremia, aquilo era inesperado, o itinerário era novo para ele e se demorara demais na empresa desta vez.
- O que vocês querem? Sua voz tremia, nunca passara por algo assustador.
Um dos bandidos se aproximou dele na calçada escura, o farol fechou, o farol abriu. A arma hipnotizava Kadiz.
- Nós vamos passear meu chapa, você vai sacar uma grana em seu banco para seus cumpadres aqui! Agora passa para o banco de trás que vamos passear.
Kadiz respirou fundo e falou baixinho:
- Leões...
- Que cê disse palhaço?
Kadiz criou coragem:
- Leões, não estão ouvindo? Estão se aproximando. Não tem um circo por aqui? Devem ter fugido, ou quem sabe fugiram lá do Simba Safári.
Os rugidos logo surgiram de vários locais da esquina, cercando os quatro, leões e leoas amarelos de olhos vermelhos, negros, dentes à mostra e mandíbulas nervosas – prestes a atacar. Os bandidos atiraram, mas de nada adiantou. Um rugido alto e longo partiu do meio dos leões acima dos barulhos da cidade. O “ROAARR” de ultimato fez os bandidos gritarem e correrem por uma brecha no bloqueio dos leões, Kadiz respirou aliviado, mas notou que algo escuro ficou e o observava enquanto os leões esvaneciam ante seus afagos agradecidos. A sombra escura parecia algo milenar de intenções más. Algo que Kadiz julgou não pertencer a sua realidade, nunca vira uma manifestação daquela, tinha certeza. Aquilo odiava de forma intensa o jovem, disto o mesmo não tinha dúvidas.
- Você não é humano, não?
A coisa sem forma clara pairava próxima, uma névoa consciente. Uma pessoa passou apressadamente por ele e atravessou a névoa, um carro buzinou para um motoboy distraindo temporariamente Kadiz.
Ao olhar de novo, a névoa estava mais próxima dele, ameaçadora.
- Hoje sou eu quem está sendo surpreendido pelo mundo, irônico; sabe, eu creio em Deus, leio a Bíblia – sabe que Deus parou o sol uma vez e outra vez retrocedeu o tempo para um rei? Sempre acreditei nestas histórias e jamais deixarei de acreditar, talvez seja isto que me faz pensar certos acontecimentos ao meu redor com sabedoria e comedimento. Presente de Deus, sabe...sempre usei este dom com cuidado.
A névoa se expandiu e o coração de Kadiz se acelerou. Prestes a explodir diria.
- Já ouviu falar do anjo assolador do Senhor? Ele está aqui, de espada em punho e não está nada feliz contigo.
Ao dizer isto, Kadiz se voltou correndo enquanto via de relance ( no sentido oposto a sua fuga) um anjo com enormes asas, espada prateada e túnica esvoaçante partir com aparência feroz contra a névoa. Com três golpes desfez a fumaça que a pouco o ameaçara e que parecia estar por trás dos bandidos que os leões espantaram.

O anjo pairou batendo as asas de tempos em tempos, se sustentando no ar de forma graciosa e levemente trepidante – avançando e recuando com um brilho leve ao seu redor.
- Como meus vaga-lumes, pensou alto.
O anjo sorriu e embainhou a espada em sua cintura no cinto de pano grosseiro que amarrava sua túnica.
Kadiz sorriu satisfeito e:
- Obrigado amigo anjo, pode ir, você me “guardou” bem!
O anjo sorriu e respondeu enigmático:
- Vim a pedido de meu Deus e Senhor e vou porque agora me requisitam em outro lugar e não porque dispensa meu serviço, amigo Kadiz Quanta. Adeus...
Um último bater de asas e sumiu rapidamente. Kadiz, se perguntado por alguém, não saberia dizer em que direção o anjo partiu. Daquele dia em diante não realizou mais aqueles feitos, mas outros dons maravilhosos surgiram e o acompanharam até o dia de sua morte e da morte de sua esposa Sofia, pois Deus era com eles. E esta é a coisa mais maravilhosa e sobrenatural que alguém pode desejar nesta vida e na derradeira!

Quando Kadiz fechou seus olhos pela última vez, disse sorrindo (segundo palavras de seu neto Júlio que estava ao seu lado neste dia) “Você de novo, meu guarda! Bem-vindo!” e após um suspiro se calou com uma expressão grata.


Fim...por enquanto...


Você está deixando a Zona Crepuscular neste momento, mas isto não significa que não há um mundo fantástico ao seu redor. Olhe que belos vaga-lumes estes, voando em sua mente!


quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Zona Crepuscular pergunta: O que fazer com um Coração Denunciador?






Zona Crepuscular indaga na postagem desta vez: Pode um coração denunciar as intenções de seu dono? Confira neste misterioso sonho que uma pessoa teve certa vez em algum lugar de nosso planeta:





O CORAÇÃO DENUNCIADOR



Por fim despertei, suado, o coração acelerado e mais uma vez me vi sozinho em meu quarto de meu pequeno apartamento. Logo liguei para a portaria e o porteiro noturno me indicou as horas, alta madrugada – mas o que eu queria mesmo era ouvir uma voz do outro lado após aquele sonho perturbador.

Sonhei um homem magro loiro, ele circulava por ruas, tenso, apertava algo no bolso de sua calça e suava também. No sonho senti odores da rua, das pessoas, das mulheres. Segui o homem a certa distância. O mesmo foi parado pela polícia devido sua atitude suspeita, mostrou documentos, era um engenheiro (como eu sou), se me recordo, se não me recordo julgo ser ou devo ter completado a história com minha imaginação recém desperta. Tudo que sei é que o loiro não foi revistado. Bem, o desespero de esquecer o pesadelo e a vontade de lembrá-lo procurando indícios de alguma finalidade em tê-lo passando como um filme caótico em minha mente nesta madrugada lutaram, venceu o segundo e continuei a lembrar...

O homem foi liberado e mandado para casa, eu continuei a segui-lo à distância, ele se virava a todo o momento, se me via, parecia indiferente; eu não era o objeto de sua busca. Notei agora uma leve fumaça em seu peito, brotava fininha e negra; creio que ela estava lá antes, mas devido ao caráter brumático e enevoado da situação não despertara minha atenção. Só que agora ela se destacava e parecia aumentar à medida que nos afastávamos da polícia. Do peito de algumas pessoas entre os pedestres também saia aquela fuligem e quando olhei para o meu peito quase desabei no chão do susto que levei, na altura de meu coração havia um buraco negro de onde vazava a tal fumacinha. Respirei fundo e me concentrei no ato de convencer-me da natureza do sonho e sua irrealidade. Estava caminhando em terras oníricas e só. De repente o homem estacou, ficou observando o movimento atarantado de pessoas. Volta e meia dava maior atenção para um ou outro passante. A fuligem preta em seu peito parecia aumentar e ficar mais e mais negra - chegava a encobrir e enevoar o rosto do cidadão; cobrindo seus olhos e suas intenções.
Por fim escolheu uma senhora e se pôs a segui-la e eu a ele.

O peito da senhora não sangrava aquele fumo preto, o do homem parecia uma daquelas velhas chaminés do início da revolução industrial na Inglaterra, aquelas leviatânicas empresas com suas crianças sem alma; mulheres e homens em jornadas infinitas sem folgas ou feriados – só o fantasma da demissão, da doença e da mendicância a assombrá-los em meio a turnos cansativos que cuspiam rolos e rolos de fumaça e fuligem para alimentar o fog londrino e desesperar a todos. Agora a fumaça do engenheiro chegava a encobri-lo de meus olhos em certos momentos. Pôs-se ao lado da senhora e de forma rápida e inesperada sacou de uma navalha e apunhalou a senhora - gritei ao ver o absurdo da cena; sem ao menos tentar correr, o assassino foi imobilizado por três senhores, creio que um vigia, um policial e um juiz – era o que me parecia ou o que minha mente julgava adequado e satisfatório para o desenlace daquela cena trágica. A mulher agonizou rapidamente sem entender nada.

Gritavam com o loiro agora, uma multidão o cercava e indagava “por quê, por quê?”.
Sereno e aparentemente aliviado, respondia a todo instante; “não sei... não sei...”.

A fumaça continuava a fluir de seu peito, então num ato de coragem, me desvencilhei da multidão e avancei para o assassino, quando me aproximei dele, vi que sua camisa estava rasgada na altura do peito devido aos puxões que sofrera. O povo parecia surpreso com minha atitude e esta parecia ser a deixa para o início de um linchamento, mas a presença da polícia os desencorajava. Fiz algo estranho naquele momento no meu sonho, vi que o peito do engenheiro tinha uma abertura na altura do coração de onde saia a fumaça, rapidamente enfiei minha mão ali e retirei seu coração negro, levemente coriáceo-rubro, nem pulsava, parecia porcelana negra e, por um furo escapava a fumaça preta que tanto me intrigara, uma falha no coração? Não sei...curioso, com uma mão segurei o coração da criatura e com a outra pelo mesmo buraco que também havia no meu peito retirei meu coração negro rubro de porcelana e o comparei mão a mão com o do assassino. Comecei a suar frio, eram idênticos, os furos, a fumaça negra, o não pulsar. Começou a me faltar ar, uma dor enorme no peito, como se alguém estivesse pressionando minha caixa torácica. Gritei e acordei...

Hoje não dormiria mais (estava decidido) então fiquei na sacada de meu apartamento, vendo as pessoas passarem na rua e pensando na fumaça que fluía lentamente do meu peito. Temi...






FIM, por enquanto...




Você está abandonando neste momento Zona Crepuscular, mas nunca deixe de observar seu peito, qualquer fumaça perigosa que escape de seu coração pode ser o prenúncio de algo que pode fugir ao seu controle...






Volte sempre a Zona Crepuscular





















domingo, 4 de novembro de 2007

Zona Crepuscular surge com a seguinte questão: O dinheiro é bom?





Zona Crepuscular – acesse contos inesperados que ocorrem na hora mágica... nem dia, nem noite.

Neste post você conhecerá o conto:

O DINHEIRO É BOM?


Em um lugar na cidade de São Paulo:
- Que foi marido, não ganhou nada hoje?
O marido entrou surpreso no barraco, o delicioso cheiro do feijão quase o fez esquecer dos eventos de há pouco. Tomou fôlego e falou:
- Salvei um cão de ser morto hoje no Parque do Ibirapuera e ele me agradeceu. É, o bicho falava! Disse que era um soberano em suas terras, mas estava encantado e sua morte traria muitas desgraças ao seu reino.

A mulher olhou friamente para o marido e falou:
- Tá bom, marido, e o que ele te deu em gratidão?
O marido chocado com a pergunta, respondeu contrariado.
- Nada, ele não me deu nada, só agradeceu.
A mulher deu-lhe as costas friamente e se pôs a encher apenas seu prato com arroz, feijão e ovo. Disse entre dentes:
- Você é como tantos e tantas que deixam as oportunidades da vida escapar. Olhe este barraco horroroso no qual moramos há anos. Não me admira não termos filhos, que futuro teria uma criança morando conosco? Volte lá agora e busque sua recompensa.
O marido a observava surpreso a porta do barraco, o cheirinho do feijão...
- Vá agora! Vá! cortou a mulher qualquer pensamento ou possível argumentação do homem.

Bateu a porta e se foi para o Parque do Ibirapuera...atrás do cão...
Voltou uma hora e meia depois e no lugar do barraco, uma bela casa, com um belo quintal e ao fundo um cantinho para o galo e as duas galinhas que antes passeavam pelas vielas da favela como um rei galináceo e suas duas rainhas.
Entrou na casa e encontrou a mulher com cara de “poucos amigos”.
- Fantástico, o cão fez como pedi; a casa é linda e espaçosa; está feliz mulher?
Com ar azedo, a mesma respondeu:
- Pareço feliz? Você me pergunta se estou feliz? Não quero esta vizinhança e porquê uma casa se podemos ter uma mansão como aquela do apresentador Silvio Santos ou aquela do ex-prefeito Paulo Maluf? Volte lá e peça direito...agora!

O marido voltou (estômago roncando, aliás) e encontrou o cão, suplicou sua ajuda mais uma vez – o lago do Ibirapuera pareceu se agitar e o bailado da fonte pareceu estranho, ameaçador. O cão o atendeu mais este pedido, sabia ser grato e a petição não era irrealizável.
Correu para casa feliz e morto de fome, quase foi barrado pelo porteiro da mansão, a vizinhança desaparecera e a casa tinha um gramado maravilhoso verde lustroso onde o galo e as duas galinhas ciscavam animadamente – como ciscavam há pouco quando o animal era rei da viela com suas duas galinhas, botando para correr qualquer criança que deles se aproximasse.
O homem entrou esbaforido após vencer um lance de escadas de mármore italiano e sua mulher que tinha por profissão manicure agora era atendida por uma equipe de um destes salões famosos da área dos Jardins – mas não parecia sorrir.
Rosto angustiado com a seqüência de eventos que imaginava ocorrer naquele novo contato com a esposa, indagou bajulador (a bajulação já salvou tantas pessoas, quem sabe...):
- Mulher, que mundo é este que vejo e que boa figura têm, esta corada (seria maquiagem?)! A felicidade agora habita nosso teto!
Impassível, a mulher lançou um olhar gélido ao redor – lá fora o galo cantava por despeito enquanto cavoucava o jardim e assediava suas galinhas – eis que a mulher tornou a disparar.
- Pareço feliz? Felicidade? Tenho uma mansão maravilhosa e empregados mas não tenho status e nem sou convidada para vernissage onde poderei ver e ser vista, onde desfilarei minha vitória aos olhos de todos e da mídia (nem tivera festa de casamento e agora queria ir nesta tal de vernissage – o que será isto? pensou acabrunhado o homem). Homem, não tenho amigas e nem apareço na tevê e nem nas revistas da moda. O Amaury Junior nunca veio me ver, aquele entrevistador de celebridades; pior, nunca andei de jatinho. Estou feliz? Ora, corra àquele cãozinho e peça direito desta vez; quero ser presidente do Brasil e não refém desta mansão. A mulher dizia estas coisas enquanto saboreava um anacrônico caviar e mastigava de boca aberta um canapé.

O marido, hipnotizado pela visão da comida que o aguardava, à beira de um colapso alimentar (resumindo, esfomeado pra caramba) girou nos pés e correu até o lago, que estava cada vez mais turbulento, levemente escarlate – o dia caminhava para seu fim, mas seu tormento parecia quase eterno, Sisífo rolando pedras e mais pedras alguém diria.
- Cãozinho, cãozinho que com boa vontade salvei; demonstre-me sua gratidão e transforme minha senhora numa espécie de presidente-rei.
O cão de olhos brilhantes esverdeados e sorriso cansado se admirou de mais aquela exigência e respondeu:
- Vá, pois assim agora o fiz!
O homem sorriu morto e se foi.

A mansão parecia maior, cães de guarda brincavam com o galo e as duas galinhas na proximidade da guarita (de fora paparazzos tiravam fotos dos bichos, quem sabe como a revista de fofoca usaria aquelas imagens), diversos seguranças e homens de preto observavam toda a movimentação – um entra e sai de carros diplomáticos e limusines com personalidades e presidentes de empresas nacionais e multinacionais o deixou perplexo e no heliponto da mansão (tinha isto antes? Já não saberia dizer) o tráfego era intenso. Estaria ele na Granja do Torto - a casa do presidente? Parecia que sim.
A muito custo se fez anunciar e após autorização de alguém no interior (um tal de secretário do gabinete) entrou escoltado e vigiado por câmeras de circuito interno. Imóveis militares fardados com roupas algo sérias algo festivas guardavam a entrada da mansão. As galinhas ciscavam com fúria nos jardins estilizados e o galo bebia sua água despreocupado num lago de trutas (comeria um peixinho deste cru, pensou o esverdeado homem enquanto seu estômago fisgava e dava pontadas, marretadas de dor).
Sua mulher o atendeu na Sala Presidencial onde secretários e secretárias despachavam; altas personalidades conversavam a meia boca e políticos adulavam e bajulavam descaradamente sua senhora. Ciúmes? Nem pensar, só queria o fim daquele amargo e estranho pesadelo e comer algo. Um prato de feijão com farofa, nada mais...
Assim que a mulher o viu, levantou com um sorriso metálico, encostou seu rosto no dele, beijou levemente sua bochecha e sussurrou:
- Nem pense em entrar, agora me decidi: quero ser papa e é agora!
O marido com ar boçal e desanimado gemeu (estava a ponto de desmaiar):
- Mas mulher, o papa nem é mais senhor absoluto de toda cristandade, veja os protestantes e a quantidade de seitas e idéias a respeito da figura de Deus, mulher! Tem certeza que é isto que quer?
A mulher quedou-se em silêncio (todo burburinho na sala em respeito também se calou) e um sorriso mortal assombreou seu rosto. Riu baixinho...
- Tem razão, sou insensata; afinal quem controla o rumo das estrelas, o nascer e o pôr-do-sol, o avançar e o recuar das ondas do mar, quem pode deixar viver ou morrer. Marido vá ao cão, pois eu sei o que quero: Quero ser Deus e não se fala mais nisso. E quero agora!
O olhar colérico e febril da mulher possessa o intimidou. Era esta a mulher com quem fizera votos e vivera todos estes anos? Suou frio e o coração disparou enquanto vencia os lances de escada rumo a rua.
Correu para o Parque do Ibirapuera em meio a um tempo estranhamente fechado, um céu vermelho com ventos fortes, raios e trovões dispersos mas insistentes; perdera a fome e quando olhou o horizonte na hora final da luz e ingresso da escuridão se apavorou com os tons escarlates que riscavam o céu que agora estava tinto de sangue (depois ficou sabendo que a zona leste da cidade fora inundada por aquela tempestade, mas esta é outra história).

Atravessou os portões principais do Parque Ibirapuera, passou pelo prédio da Bienal, pelo MAM e pela Oca, teve um arrepio quando passou pela enorme e negra aranha de metal que enfeitava agora o parque e quase foi atropelado por um skatista de olhar misterioso.
O público mudava aos poucos, os freqüentadores do final da tarde se iam e alguns corredores chegavam para corridas noturnas, além de jovens elfos de intenções estranhas que atravessavam os portões e iam para os bosques mais escuros aguardar seus clientes e sacrificar suas juventudes para deuses estranhos.
Gritou pelo cão a beira do lago, perto do jardim onde se abrigavam patos, ganso e outros moradores do parque:
-Cão, cão, atenda mais um dos pedidos meus, a mulher com quem vivo enlouqueceu e como prova de gratidão por eu tê-lo salvo, pede que neste momento a torne Deus!

Um silêncio monstruoso se manifestou após estas palavras do suado homem. O lago escarlate escuro pareceu congelar momentaneamente, as intempéries cessaram bruscamente por um instante e o homem viu algo perturbador nas profundezas do lago que nunca vira antes, não eram os tradicionais peixes a mendigar comida. Algo grande e negro vinha em sua direção como predador aquático. O homem temeu e recuou da margem do lago ao mesmo tempo que via o cão verde que salvará emergir todo molhado. O animal sacudiu o corpo espalhando água por toda grama nas proximidades e deu um urro que era um misto de ganido e uivo, olhou faiscante com olhos ora verdes ora vermelhos para o homem a sua frente e vociferou:
- Está feito, ela é Deus.
Uma bruma negra baixou no mesmo instante deixando todos as escuras, gritos se ouviam por toda a parte e batidas de carros (soube-se que o fenômeno ocorreu em todo planeta, mas até o momento os especialistas não sabem definir que tipo de eclipse fora aquele, mas esta também é outra história).
Um grito de júbilo ensurdecedor ecoou na mente do homem e o arrepiou:

- Sou Deus, adorem-me!

Para seu horror, a voz cavernosa soava como a voz de sua antiga companheira de quarto.
Uma estrela riscou os céus e caiu no lago estrondosamente, gerando chiados, fumaça, clarões e lançando peixes na margem, onde permaneciam se debatendo. De onde o lago borbulhava, se erguia uma mulher de aparência terrível, flutuando no ar; pousou sobre o lago, caminhou dois passos sobre o mesmo e olhou furiosa para o marido (ex-marido provavelmente). Deu um grito de dor, se contorceu e subitamente fez “PLOP” desaparecendo como uma bolha de sabão e névoa úmida num dia tranqüilo de verão, que se vai...

O homem que caira de pavor se levantou assustado e a noite se tornou clara, iluminada pelos primeiros raios lunares. O cão o observava atento.
Criou coragem e perguntou para o animal:
-O que ocorreu cão?
O cão se levantou, marchou para o lago e de costas respondeu:
- Só existe um Deus, nem eu mudo isto, agora, não me perturbe nunca mais; estamos quites. O animal mergulhou no lago e se foi para sempre...




Fim...por enquanto...


Você está deixando a Zona Crepuscular neste momento, mas ela dificilmente deixará você!