sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A dança










































A vida às vezes parece uma festa

José descobriu isto e as conseqüências advindas, saiba o porquê:


A Dança! ! !



José Rip Van Winkle odiava seu nome, filho adotivo brasileiro de um estrangeiro que abandonou sua mãe. Odiava diversas coisas e pessoas também. Seu hobby era odiar. Ficava chocado com a naturalidade com que as pessoas se intrometiam em sua vida.
O casamento? Um marasmo.Os filhos? Um porre. O emprego? Uma fábrica de engolir sapos. A igreja? Que igreja? O futuro? Ora, ele sabia, ao futuro pertence, pois seu presente, era lá que vivia boa parte de sua vida, imaginando como seria no futuro, tudo! O seu aqui-agora o deixava estritamente infeliz e angustiado. Amantes, drogas? Não acreditava que nada disso traria o sonhado equilíbrio que buscava. Morar numa cidade pequena com problemas de cidade grande era perturbador! Amigos mortos, seqüestrados, atropelados e outros que foram embora, tentando escapar deste sonho atormentado. Fugir para onde? Se geralmente uma horda da cidade grande chegava mês após mês a cidade, com seus carros e motos barulhentas. Traziam a semente de tudo o que há de bom e de ruim na estrutura deixada para trás. Fugir por quê?

Mas a gota d`água chegara. Após ameaças infinitas, a esposa o deixara. Mudara-se com os filhos para um bairro próximo. Devia ter ido aquele encontro de casais que ela pedira, uma terapia talvez resolvesse – se não achasse isto ridículo. É...deveria ter sido menos ausente, lutar por um relacionamento melhor. Amigos em situação parecida haviam vencido estas crises de casamento – sabe-se lá com qual malabarismo emocional. Sua atitude de “ ao sabor das ondas” só piorou tudo. Agora era tarde, sua esposa se fora, para sempre – segundo as palavras dela.
Os filhos, o juiz decidiria como seria estabelecida a visita. Este era o resumo de uma vida, a vida de José Rip Van Winkle.

Era uma vez uma história que começava a partir dos bagaços de vida de um homem.

Numa tarde ensolarada de sexta-feira, José pegou seu paletó e em silêncio saiu de sua mesa – um pensamento o lançou de sua constante letargia – passou pelo gerente geral que o questionou “ onde vai a esta hora, Senhor Rip?”
Como resposta ganhou um dar de ombros desinteressado e viu o funcionário sumir nos corredores labirínticos da empresa.
Logo o funcionário ganhou a rua e para cada conhecido que o cumprimentava ou perguntava algo, a resposta era o característico dar de ombros e cara fechada, estava cansado e isto sempre funcionava – pensou Rip.

Seguiu a pé. Em poucas horas estava forma de sua cidade, passando por chácaras e sítios e a noite se aproximava vagarosamente manhosa, devorando sem pressa os raios do dia. Parou num matinho “ o mundo é o banheiro dos homens” e prosseguiu aliviado.

Poucos eram os carros ou pessoas que via agora.

Um som festivo chamou sua atenção, vinha de um sítio a frente – entrou no sítio, passou a porteira e logo a frente foi barrado por dois seguranças:

- Onde você pensa que vai?
- Sou convidado. disse com convicção.
Um segurança olhou para o outro e perguntaram juntos:
-Você também assinou o contrato?
- “ Contrato?” Ora, que pergunta sem nexo! Assinei sim, por quê? disse desafiador.
- Lembrando, só sai quando a festa acabar – a regra é clara e todos estão cientes, senhor!Nem tente voltar antes do término.
- Sei, sei...dá licença, brucutu!
Abrindo passagem entre os dois marmanjos Rip seguiu para o enorme salão de baile, com teto móvel, bar, danças, bebidas, banheiros límpidos – com chuveiros e toalhas – e vestiário com enorme variedade de roupas a fantasia, máscaras diversas – as negras dos homens e as brancas das mulheres como pode observar depois. Havia ainda um lote de máscaras vermelhas pertencentes aqueles que organizavam e lideravam o evento.
Um senhor de máscara vermelha o conduziu ao vestiário onde se vestiu como elfo e escolheu uma máscara negra com um bico de metal adunco, era em couro, amolfadada e levemente cheirosa. Sua primeira festa a fantasia, estava eufórico!
Foi para o salão de festas, bebeu, comeu, dançou por semanas – nada parecia importar para aquele grupo, dormir, acordar e festejar – ninguém para dar bronca, ninguém para bisbilhotar sua vida, não perguntava o nome de nenhum dos convivas e o oposto ocorria – por Rip, isto poderia durar para sempre. Finalmente, a vida parecia uma Festa!



Entre uma música e outra, um ponche e outro, parecia ter impressão de ser filmado, câmeras ocultas, com certeza. Não que ligasse, não era a primeira vez que entrava de bico numa festa, claro, que isto era algo que fazia quando era bem mais jovem.
Tocou o ombro de uma elfa de cabelos loiros e meia máscara branca:
- De quem é a festa, querida?
Surpresa, a mulher se afastou – o mesmo ocorreu com outros que indagou. Até que alguém sussurrou algo sobre “Guinness”.
Rip não conhecia nenhum “Guinness” e resolveu deixar para lá...

Dormia pouco, geralmente nos vestiários ou nos banheiros. Talvez fosse algo na bebida ou no alimento, talvez fosse a ausência de preocupações. Estava sempre disposto ali.
Aprendeu a dançar valsa, tango, flamenco, rock-samba, country e muitos e muitos outros ritmos que os máscaras vermelhas traziam. Breves ensaios nos vestiários, marcações discretas no chão e logo todos bailavam, dançavam, agitavam os ossos alegremente ou burocraticamente, mas sempre impecáveis, com pouquíssimos furos. Alguns ali, não pareciam nem precisar dos ensaios, pareciam ter nascido para dançar. As pessoas não se falavam, só festejavam, festejavam, parecia que ali o único foco era comer e dançar.




A comida não se esgotava, nem a bebida, se chovia o teto móvel era fechado, se estava calor: fantasia de odalisca e simbad – se estava frio: roupas de urso, leão ou fantasias de época do tipo Maria Antonieta. Mas quase sempre, o vestiário disponibilizava roupas de elfos e elfas e sempre havia o rei e a rainha do baile, sempre os mesmos, sempre mascarados. Um Puck Shakespereano circulava com um sorriso sardônico maquiado e vez ou outra gargalhava, como um bobo da corte, instando as pessoas a sorrir e dançar.
Aliás, daqueles que viu o rosto rapidamente, Rip não os conhecia e nem chegou a conhecer posteriormente, após muitos anos. Nas vezes que beijou as mulheres e garotas – e não foram muitas – isto não redundou em intimidade ou um relacionamento contínuo. Estavam ali para rir, brincar, dançar e festejar. Sempre e sempre. Os máscaras vermelhas cuidavam do resto. No final, adorava aquela vida. O mundo lá fora não interessava, se Paris era festa, aquele sítio era Paris para José Rip.

Poderia se alimentar de mistério, glamour, festividades, folguedos e alegrias – a saudade não tinha espaço em seu peito dançante e sorriso marcante.

Por diversas vezes comemorou o ano-novo, fogos, luzes, brindes, um espetáculo de cores observado a beira do lago contíguo ao salão de festas. Após a contagem regressiva feita em coro, a explosão efusiva era dominada com champanhe, Chandon? não saberia dizer, era ótima e isto que importava e mais um ano era comemorado. Mas, que ano? Não saberia mais dizer, não tinha certeza que ano era aquele e que tipos de alegrias e tristezas a humanidade atravessava fora daquele sítio.




Ficou em forma de tanto dançar e brincar. Quando questionava alguém se não tinha vontade de ir embora dali, ouvia um discreto “não” e a pessoa se afastava dele por um tempo, como a evitá-lo. Algumas pessoas ele conhecia só pela forma de rir, dançar, andar ou por pequenas cicatrizes, formato de corpo independentemente da fantasia ou máscara embora isto não redundasse em amizade. Tampouco ligava, cansara de tentar agradar os outros há muito tempo – ali era perfeito para um sujeito amargo, egoísta e desinteressado de travar relações ou obrigado a demonstrar interesse por pessoas tediosas; um lugar como sempre sonhou para si mesmo. Se o objetivo ali era festejar eternamente ou até o fim dos tempos ou de seus dias Rip daria o melhor de si para cumprir com este objetivo. E saia bailando pelo salão atrás de uma parceira e se pudesse roubar um beijo, assim o faria e para ele: isto era vida. Longa vida para o rei e a rainha do baile!

As semanas passavam, os meses, os anos, logo, contar o tempo perdeu o sentido, comemoravam a passagem do ano, mas isto parecia ocorrer mais vezes que o habitual, era visível que as estações passavam, verão, inverno, brumas, quando? Mero detalhe sem importância.

Os máscaras vermelhas faziam barba, cabelos, bigodes, maquiagens num salão de beleza do lado do vestiário e todos procuravam se apresentar impecáveis. A diferença, era que nestas horas, reinava o silêncio, palavra estranha para um lugar onde pessoas eram preparadas para festas e mais festas que se seguiam. Nada de risadas ou assuntos profanos, nem fofocas. Todos pareciam se preocupar em manter esta aura misteriosa, ou, quem sabe, todos eram como ele, cansados de convenções humanas, o contrato social não regia aquele grupo – obedeciam a outras regras que ele desconhecia.

No American Bar do salão de festa reinavam novidades, o barman sempre inventava um novo drink com frutas tropicais como o cajá, acerola e outras. Ninguém bebia até cair, parecia haver um controle velado em relação aos excessos e até ele desenvolvera um certo autocontrole – o grupo não se rebelava em momento algum e Rip seguia a vontade do grupo: Festa! Festa! Festa! Festaaa! Festaaaaaaaa!

E o mambo corria solto até o amanhecer e alguns mergulhavam no lago, até serem cuidadosamente resgatados por um máscara vermelha...
Os máscaras vermelhas eram fantásticos, cantavam, dançavam, motivavam, vigiavam, treinavam os passos, apresentavam as novas músicas e ritmos, preparavam drinks e comidas surpreendentes. Eram adorados por todos, ótimos senhores da festa, perfeitos cabeleireiros, fantásticos manicures e incríveis alfaiates. A festa não tinha fim e não podia parar. O Rei e a Rainha escolhiam o príncipe e a princesa da festa.
Rip fora escolhido príncipe duas vezes, numa festa de congada e em outra festa de Boi Garantido de Paritins. Quase vencera numa noite flamenca e depois numa noite de tcha tcha tcha.

Notou cabelos brancos surgindo um belo dia de garoa e festa mexicana enquanto estourava cabaças de doces. Correu para o salão na manhã seguinte e ganhou seu primeiro de muitos tingimentos durante toda a extensão da Festa Sem Fim – que era como muitos chamavam e sussurravam entre si, longe da presença dos máscaras vermelhas – e assim parecia para Jose Rip Van Winkle. Não há bem que dure para sempre e nem tristeza que comande toda uma vida, mas ali parecia uma grande foto de formatura ou de casamento, um instante alegre congelado no tempo.
O que importava é que, na prática, muitas mulheres da festa começaram a requisitá-lo nas danças devido sua evolução como dançarino e isto passou a render beijos calientes. As pessoas começavam a demonstrar, ainda que discretamente, uma carência de contato e paixão, que a música não mais supria. Alguns começaram a dançar tango nos cantos do salão, mesmo que a banda tocasse outro estilo musical, esta incoerência foi combatida com discrição e vermelha pelos máscaras vermelhas – logo o desvio fora quase que eliminado, mas o tango não!

- Que a festa não tenha fim! era seu brinde mais freqüente quando tinham a oportunidade de brindar e falar mais abertamente no salão de festa. Era tim tim tim de lá, tim tim tim de cá e no dia seguinte nova festa temática junina com sua quadrilha, anos 70, anos 80, anos 90, festa dos tabernáculos, pratos gregos quebrados, baile da saudade, ritmos indianistas, caribenhos, africanos, danças típicas portuguesas e, indiferente aos participantes da Festa Sem Fim, algo aconteceu, ineroxavelmente: mais de quinze anos se passaram e nenhum dos dançantes convivas se atentou a isto - ou se preocupou efetivamente...




Um dia, em meio há festa regada a cuba libre e whiskey a gogo, um senhor de cabelos grisalhos e terno preto impecável com sapatos brilhantes atravessou o salão em direção ao trono dos reis, o amalucado Puck o observou sem gracejar, a música , uma camarata, prosseguia; todos que o viam paravam magnetizados. Rip nunca o vira, engraçado que não usava máscara. Seu par não parecia reconhecê-lo e nenhum outro casal próximo sabia ou queria responder. Algo novo estava prestes a acontecer...

O rei e a rainha se ajoelharam perante o homem, este os ergueu educadamente e com um sorriso constante sussurrou aos ouvidos de ambos e estes, armaram um sorriso. Parecia que o dia de homens vazios circulando pelo baile se acabara, finalmente uma emoção espontânea e sincera no rosto de alguém. Graças ao senhor misterioso.
O rei, pela primeira voz, soltou a voz encobrindo o som da banda e gritou efusivo enquanto se desfazia de sua máscara:
- As taças, sirvam champanhe a todos...pela última vez, amigos!
O ambiente foi inundado por esfuziantes e continuas palmas e misteriosamente pareciam ecoar nas caixas de som – como a multiplicar o calor do momento – a tecnologia a serviço de um momento solene e esperado por muitos, como pode notar Rip, entre alegre e confuso. O que seria tudo aquilo afinal?
As taças foram distribuídas, as champanhas despejadas e todos riam com gosto longamente e se abraçavam – indiferentes a presença do Senhor Grisalho. O rei emendou um discurso:
- Queridos e festeiros comensais, queridas dançarinas, vosso rei tem uma declaração a fazer – como todos já devem imaginar – isto trará felicidades a todos. Saibam que a obra de nossas mãos não foi vã, enfim alcançamos o prêmio de nosso labor. O Senhor Wonka, idealizador deste projeto inédito, trouxe hoje a notícia em primeira mão. A Festa Sem Fim é um sucesso e, de longe, não há quem possa imitar o que fizemos aqui por quase 20 anos. Hoje não vamos encostar nossas cabeças nos travesseiros de nossos dormitórios, vamos para casa, para nossa família, vamos conhecer um admirável mundo novo, que nos espera como heróis! Graças ao nosso mecenas Sr Wonka – aplausos obliteraram o discurso temporariamente – e a nossa Rainha , juíza isenta neste desafio que dedicou sua vida ao meu lado para comprovar a veracidade deste recorde e também graças ao empenho pessoal de todos aqui, tenho uma informação – nova interrupção sonora com palmas, assovios e gargalhadas, o grupo parecia adivinhar e antecipar a comemoração.
O Rei ficou vermelho, tirou a coroa e antes que perdesse a compostura real apresentada por vinte anos, abraçou a Rainha e disparou sem dó, num fôlego único:

- Vencemos o desafio e superamos o recorde anterior listado no Livro de Recordes e esta última semana de festividades foi transmitida para o mundo todo com sucesso de audiência. Todos nós temos nossos nomes grafados no Guinness com a entrada da Festa Sem Fim em seus anais e cada um recebera, por esta vitória e por sua persistência uma soma em dinheiro que fará tudo o que passamos aqui valer a pena. O contrato que assinamos foi bizarro, mas fantástico. Quem imaginaria ter um emprego que é debutar eternamente, festejar sempre e sempre – rir, folgar, dançar e dançar e dançar?
- Vitória senhoras e senhores, vitória querida. Estamos no Livro dos Recordes. Eu tive um sonho e hoje ele se realizou!!!
- Obrigado Senhor Wonka, obrigado a todos, grato a todos que estão nos assistindo e grato a você minha Rainha.

Rip parecia morto, pasmo, chocado. Então este era o tal do Guinness, um livro de recordes e todos ali eram pagos para festejar. Seu estômago embrulhou.

- Vamos...bem, sem ser repetitivo após todos estes anos, mas isto é algo para comemorarmos, então vamos festejar esta última noite e depois cada um poderá ver seus familiares e começar uma nova vida e usufruir desta vitória tremenda – que nunca será esquecida; não é Senhor Wonka?

O velho de cabelos grisalhos sorriu e falou ao microfone:
- Agradeço a todos por terem acreditado no meu sonho e no sonho do Rei, lutamos para dar a melhor estrutura e as melhores festas a cada um de vocês, sem deixar cair na rotina ou acontecer muitos temas repetidos. Contamos com uma equipe empenhada em criar festas e mais festas, todo ritual festivo que a humanidade praticou nestes milênios, vocês reviveram nestas décadas. Parabéns! Saibam que resistimos a planos econômicos absurdos, Plano Collor, Plano Verão, URV, Plano Real, abertura do mercado brasileiro, a chegada da internet com seu alcance mundial, o muro de Berlim caiu, as Torres Gêmeas do World Trade Center também e as crises diversas que insistem em atrapalhar nossa caminhada em busca de nossos tão almejados sonhos. Repito, sou grato a cada um, de todo meu coração, a Festa Sem Fim dificilmente sairá do Livro dos Recordes. Vocês merecem a quantia que vão receber conforme estipulado no contrato.

José Rip Van Winkle despertou do sonho, voltar para a velha vida? Foi dela que ele fugiu. O peso dos anos quase o arremessou no sonho e o fez suar frio e respirar sofregamente – era o único a não rir, o único a não tirar a máscara, tolo. Foi se afastando, assustado, que loucura era aquela? Como pudera se envolver com esta gente, estes lunáticos, desligados da realidade. E por vinte anos? Como pode andar com estranhos por vinte anos e não notar algo de errado em tudo aquilo? Tudo fora cômodo, irresistivelmente cômodo. E sua ex-esposa? E seus filhos? E seu emprego que a pouco abandonara para andar sem rumo e parar ali naquele sítio afastado do centro da realidade. Pouco? Vinte anos se passaram, o que faria agora com cinqüenta anos? O peso da idade quase o fez cair, o estômago revirava – e daí que existiam pessoas que recomeçavam a vida com 50, 60, 70 e oitenta anos? Pela primeira vez teve autêntica vontade de fugir dali, que papel fizera, estava envergonhado e não queria ser descoberto pelos parceiros de dança. Fugir...e foi o que fez. Discretamente.
Pegou suas roupas surpreendentemente conservadas no armário do dormitório masculino que fora dele por vinte anos. Vestiu e saiu sem se despedir de ninguém, se ocultando nos cantos escuros; nas folhagens e veículos de filmagem. A distância viu os dois seguranças que haviam permitido seu acesso, que peça lhe pregaram, mas não iam rir no final, ele sumiria como fumaça daquele local e pegaria a estradinha que o conduziria ao mundo real.
Era uma noz estragada no meio das boas, queria distância dali, como explicaria seu envolvimento com aqueles malucos, sua família entenderia sua atitude de se isolar devido ao castelo de cartas desabando que era sua vida? Entenderiam que havia ficado vinte anos numa festa de arromba sem fim? Isto era mais que sair para comprar um maço de cigarros e voltar dias depois. E quanto a deixar toda aquela comilança e música para trás? Bem-casados, brigadeiros, pasteizinhos de belém, espetinhos de carne, sorvetes, sucos, drinks, músicas, danças sem fim. Agora acabado, um fado sussurrava no seu ouvido, um triste fado. Tudo acabado, como ele, acabado, sem prêmio, não juntara nada, escorreu entre os dedos qualquer ilusão de amigos ou familiares.

- Chega, sacudiu a cabeça determinado e pensou, chega!

- Vou ver meus filhos, retomar meu relacionamento com minha esposa e recuperar meu emprego, não há bem que dure para sempre, tampouco mal. Pensou tentando se animar, enquanto as suas costas, o som de festejos e fogos ia ficando distante, distante, esvanecendo de sua alma.

Rip voltou solitário para estrada e retornou pelo mesmo caminho deserto e florido, bem, isto só nas suas lembranças, ruas asfaltadas, condomínios de casas, de prédios iluminação, moradores de ruas, favelas, carros e infinitas motos. As pessoas carregavam um aparelhinho estranho que vivia a incomodá-las, como um despertador desregulado, um aparelho que parecia substituir orelhões, cabines telefônicas, telefones fixos, um tal de telefone celular e as pessoas tiravam fotos com ele, ouviam música e até assistiam televisão nas ruas. E o telex? E o fax? Agora se falava em Net e um sem fim de palavras americanas – fast food, coach – era difícil entender as pessoas em certos momentos. Gírias estranhas demais para seu ouvido desacostumado.

Na cidade, viu sua empresa a distância e perguntou para um taxista que abordou: Está aberta hoje?
- Não, foi comprada por uma empresa chinesa e mudara daqui de São Paulo para a Argentina este mês.
Rip ficou aturdido, terei que arrumar outro emprego, meditou.

Seguiu para a Rua das Flores Negras e achou sua casa, aliás, apenas um terreno baldio, a casa fora demolida com mais outras, uma placa indicava que em breve um daqueles prédios horrorosos, como o Edifício Joelma da Av Paulista e os edifícios do Centro de São Paulo, seria erguido ali. Resolveu seguir para a casa da ex-esposa, na esperança de encontrar um rosto conhecido, qualquer rosto...

Respirou fundo e tocou a campainha, um jovem atendeu.
- O que deseja?
Rip ficou admirado.
- Junior, é você?
O rapaz de cabelo espetado e piercing na boca respondeu:
- Sou sim, e você – conheço?
Rip abriu os braços e emocionado, com olhos marejados, disse com voz embargada:
- Sou seu pai, meu filho!
O rapaz olhou vazio, não se impressionou.
- Quer dizer que você é o meu pai? José Rip Van Winkle, que desapareceu vinte anos atrás? Não creio.
Rip, sem graça. baixou os braços.
- Chame sua mãe, verá que digo a verdade.
- Minha mãe esta trabalhando...
- E você deve ter uns 26 anos, onde está sua esposa, filhos, onde você trabalha?
O rapaz torceu a cara e acenou para que entrasse.
- Moro aqui com minha mãe. Namoro e estou desempregado há 8 meses, Rip.
Rip sentiu o coração acelerar.
- E sua irmã Mara? Onde está?
O rapaz o encarou com frieza.
- A Mara morreu num acidente de avião 2 anos atrás, quando viajava a negócios para a Wonka Empreendimentos. Você tem uma Netinha, mas a guarda esta com o pai dela e ele mora no Líbano, é muçulmano. Nunca mais a vi...
Os olhos de Rip marejaram de novo. Falou um pouco sobre sua trajetória até ali. Ocultando os eventos da Festa Sem Fim.
Logo, sua ex-esposa chegou. O filho explicou toda a história de Rip de forma um tanto quanto irônica, em determinados momentos.
- Bem, não me interesso onde foi. Foram vinte anos criando nossos filhos, trabalhando fora e limpando a privada dos outros depois que meu segundo marido morreu. Digamos que consegui ser feliz sem você apesar da tragédia com a Mara e do atual desemprego do Junior. Você não é necessário em nossas vidas, da mesma forma que vinte anos atrás você foi embora sem lutar por mim e por nossos filhos. Pode dormir em um quarto vago que temos até arrumar uma ocupação e um lugar definitivo para morar.
O jovem adulto ligou a tevê de plasma e interrompeu a mãe.
- Olha só mãe, a Festa Sem Fim entrou para o livro do Recordes como a festa mais longa do planeta. Não é fantástico?
A mulher abatida sorriu para o jovem, condescendente.
- Sabia que o Brasil ia levar esta...somos o número um neste quesito. E o prêmio que aquela turma vai ganhar por vencer este desafio. Ah se eu tivesse me inscrito quando tive a oportunidade. Sabia que o sítio onde realizaram as festas é perto de nossa cidade, quem ia imaginar...
O rapaz cortou a mãe novamente:
- Pois é, mãe, mas quem ia cuidar de mim e da Mara, né?
A mãe sorriu amarelo.
- Tem razão querido, tem razão. e suspirou profundamente.
Rip rumou para o banheiro, assobiando distraidamente uma valsa.
- Vou tomar um banho, o banheiro é nesta direção, ah, obrigado.

A mulher, de cabelos grisalhos, forçou um último sorriso e disse sarcástica:

- Sinta-se em casa, Rip, sinta-se em casa! e desabou no sofá, tentando aliviar todo o peso do mundo que carregava consigo.








Fim




Você está saindo de Zona Crepuscular... como tantos, Rip viveu indiferente as conseqüências na vida dos amigos e familiares. Todos perderam com seus atos, será que na sua vida, o pecado capital esta voraz a consumir sua vida, aprisionando os que ama?

3 comentários:

roberta disse...

qualquer semelhança com "Os Sapatinhos Vermelhos" de Hans Christian Andersen, é mera coincidência???
Gostei...

Edu disse...

É...rêrê...mera coincidência,parece que misturei duas lendas antigas com uma espécie de big brother dançante; chocante, né?
Volte sempre, terei novidades em breve. Preciso selecionar meus velhos contos e desenhar algumas passagens. Também é possível que um ser de outra dimensão me dite e eu roube e adapte algum velho desenho não divulgado de velasquez ou francis bacon e jogue aqui. Abs!
Obs. Acabei de reler Sapatinhos Vermelhos, curioso, muito curioso...

roberta disse...

voltarei, voltarei sempre... não só porque gostei dos contos, mas o crepúsculo é realmente minha hora preferida, nem noite nem dia...talvez ambos, ou nenhum... e postarei o corvo também, original em inglês, não acredito muito em poesia traduzida! se tiver um conto, ou um desenho de chuva sobrando por aí, seria um prazer postar no meu blog, com os devidos créditos, é claro...