sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A dança










































A vida às vezes parece uma festa

José descobriu isto e as conseqüências advindas, saiba o porquê:


A Dança! ! !



José Rip Van Winkle odiava seu nome, filho adotivo brasileiro de um estrangeiro que abandonou sua mãe. Odiava diversas coisas e pessoas também. Seu hobby era odiar. Ficava chocado com a naturalidade com que as pessoas se intrometiam em sua vida.
O casamento? Um marasmo.Os filhos? Um porre. O emprego? Uma fábrica de engolir sapos. A igreja? Que igreja? O futuro? Ora, ele sabia, ao futuro pertence, pois seu presente, era lá que vivia boa parte de sua vida, imaginando como seria no futuro, tudo! O seu aqui-agora o deixava estritamente infeliz e angustiado. Amantes, drogas? Não acreditava que nada disso traria o sonhado equilíbrio que buscava. Morar numa cidade pequena com problemas de cidade grande era perturbador! Amigos mortos, seqüestrados, atropelados e outros que foram embora, tentando escapar deste sonho atormentado. Fugir para onde? Se geralmente uma horda da cidade grande chegava mês após mês a cidade, com seus carros e motos barulhentas. Traziam a semente de tudo o que há de bom e de ruim na estrutura deixada para trás. Fugir por quê?

Mas a gota d`água chegara. Após ameaças infinitas, a esposa o deixara. Mudara-se com os filhos para um bairro próximo. Devia ter ido aquele encontro de casais que ela pedira, uma terapia talvez resolvesse – se não achasse isto ridículo. É...deveria ter sido menos ausente, lutar por um relacionamento melhor. Amigos em situação parecida haviam vencido estas crises de casamento – sabe-se lá com qual malabarismo emocional. Sua atitude de “ ao sabor das ondas” só piorou tudo. Agora era tarde, sua esposa se fora, para sempre – segundo as palavras dela.
Os filhos, o juiz decidiria como seria estabelecida a visita. Este era o resumo de uma vida, a vida de José Rip Van Winkle.

Era uma vez uma história que começava a partir dos bagaços de vida de um homem.

Numa tarde ensolarada de sexta-feira, José pegou seu paletó e em silêncio saiu de sua mesa – um pensamento o lançou de sua constante letargia – passou pelo gerente geral que o questionou “ onde vai a esta hora, Senhor Rip?”
Como resposta ganhou um dar de ombros desinteressado e viu o funcionário sumir nos corredores labirínticos da empresa.
Logo o funcionário ganhou a rua e para cada conhecido que o cumprimentava ou perguntava algo, a resposta era o característico dar de ombros e cara fechada, estava cansado e isto sempre funcionava – pensou Rip.

Seguiu a pé. Em poucas horas estava forma de sua cidade, passando por chácaras e sítios e a noite se aproximava vagarosamente manhosa, devorando sem pressa os raios do dia. Parou num matinho “ o mundo é o banheiro dos homens” e prosseguiu aliviado.

Poucos eram os carros ou pessoas que via agora.

Um som festivo chamou sua atenção, vinha de um sítio a frente – entrou no sítio, passou a porteira e logo a frente foi barrado por dois seguranças:

- Onde você pensa que vai?
- Sou convidado. disse com convicção.
Um segurança olhou para o outro e perguntaram juntos:
-Você também assinou o contrato?
- “ Contrato?” Ora, que pergunta sem nexo! Assinei sim, por quê? disse desafiador.
- Lembrando, só sai quando a festa acabar – a regra é clara e todos estão cientes, senhor!Nem tente voltar antes do término.
- Sei, sei...dá licença, brucutu!
Abrindo passagem entre os dois marmanjos Rip seguiu para o enorme salão de baile, com teto móvel, bar, danças, bebidas, banheiros límpidos – com chuveiros e toalhas – e vestiário com enorme variedade de roupas a fantasia, máscaras diversas – as negras dos homens e as brancas das mulheres como pode observar depois. Havia ainda um lote de máscaras vermelhas pertencentes aqueles que organizavam e lideravam o evento.
Um senhor de máscara vermelha o conduziu ao vestiário onde se vestiu como elfo e escolheu uma máscara negra com um bico de metal adunco, era em couro, amolfadada e levemente cheirosa. Sua primeira festa a fantasia, estava eufórico!
Foi para o salão de festas, bebeu, comeu, dançou por semanas – nada parecia importar para aquele grupo, dormir, acordar e festejar – ninguém para dar bronca, ninguém para bisbilhotar sua vida, não perguntava o nome de nenhum dos convivas e o oposto ocorria – por Rip, isto poderia durar para sempre. Finalmente, a vida parecia uma Festa!



Entre uma música e outra, um ponche e outro, parecia ter impressão de ser filmado, câmeras ocultas, com certeza. Não que ligasse, não era a primeira vez que entrava de bico numa festa, claro, que isto era algo que fazia quando era bem mais jovem.
Tocou o ombro de uma elfa de cabelos loiros e meia máscara branca:
- De quem é a festa, querida?
Surpresa, a mulher se afastou – o mesmo ocorreu com outros que indagou. Até que alguém sussurrou algo sobre “Guinness”.
Rip não conhecia nenhum “Guinness” e resolveu deixar para lá...

Dormia pouco, geralmente nos vestiários ou nos banheiros. Talvez fosse algo na bebida ou no alimento, talvez fosse a ausência de preocupações. Estava sempre disposto ali.
Aprendeu a dançar valsa, tango, flamenco, rock-samba, country e muitos e muitos outros ritmos que os máscaras vermelhas traziam. Breves ensaios nos vestiários, marcações discretas no chão e logo todos bailavam, dançavam, agitavam os ossos alegremente ou burocraticamente, mas sempre impecáveis, com pouquíssimos furos. Alguns ali, não pareciam nem precisar dos ensaios, pareciam ter nascido para dançar. As pessoas não se falavam, só festejavam, festejavam, parecia que ali o único foco era comer e dançar.




A comida não se esgotava, nem a bebida, se chovia o teto móvel era fechado, se estava calor: fantasia de odalisca e simbad – se estava frio: roupas de urso, leão ou fantasias de época do tipo Maria Antonieta. Mas quase sempre, o vestiário disponibilizava roupas de elfos e elfas e sempre havia o rei e a rainha do baile, sempre os mesmos, sempre mascarados. Um Puck Shakespereano circulava com um sorriso sardônico maquiado e vez ou outra gargalhava, como um bobo da corte, instando as pessoas a sorrir e dançar.
Aliás, daqueles que viu o rosto rapidamente, Rip não os conhecia e nem chegou a conhecer posteriormente, após muitos anos. Nas vezes que beijou as mulheres e garotas – e não foram muitas – isto não redundou em intimidade ou um relacionamento contínuo. Estavam ali para rir, brincar, dançar e festejar. Sempre e sempre. Os máscaras vermelhas cuidavam do resto. No final, adorava aquela vida. O mundo lá fora não interessava, se Paris era festa, aquele sítio era Paris para José Rip.

Poderia se alimentar de mistério, glamour, festividades, folguedos e alegrias – a saudade não tinha espaço em seu peito dançante e sorriso marcante.

Por diversas vezes comemorou o ano-novo, fogos, luzes, brindes, um espetáculo de cores observado a beira do lago contíguo ao salão de festas. Após a contagem regressiva feita em coro, a explosão efusiva era dominada com champanhe, Chandon? não saberia dizer, era ótima e isto que importava e mais um ano era comemorado. Mas, que ano? Não saberia mais dizer, não tinha certeza que ano era aquele e que tipos de alegrias e tristezas a humanidade atravessava fora daquele sítio.




Ficou em forma de tanto dançar e brincar. Quando questionava alguém se não tinha vontade de ir embora dali, ouvia um discreto “não” e a pessoa se afastava dele por um tempo, como a evitá-lo. Algumas pessoas ele conhecia só pela forma de rir, dançar, andar ou por pequenas cicatrizes, formato de corpo independentemente da fantasia ou máscara embora isto não redundasse em amizade. Tampouco ligava, cansara de tentar agradar os outros há muito tempo – ali era perfeito para um sujeito amargo, egoísta e desinteressado de travar relações ou obrigado a demonstrar interesse por pessoas tediosas; um lugar como sempre sonhou para si mesmo. Se o objetivo ali era festejar eternamente ou até o fim dos tempos ou de seus dias Rip daria o melhor de si para cumprir com este objetivo. E saia bailando pelo salão atrás de uma parceira e se pudesse roubar um beijo, assim o faria e para ele: isto era vida. Longa vida para o rei e a rainha do baile!

As semanas passavam, os meses, os anos, logo, contar o tempo perdeu o sentido, comemoravam a passagem do ano, mas isto parecia ocorrer mais vezes que o habitual, era visível que as estações passavam, verão, inverno, brumas, quando? Mero detalhe sem importância.

Os máscaras vermelhas faziam barba, cabelos, bigodes, maquiagens num salão de beleza do lado do vestiário e todos procuravam se apresentar impecáveis. A diferença, era que nestas horas, reinava o silêncio, palavra estranha para um lugar onde pessoas eram preparadas para festas e mais festas que se seguiam. Nada de risadas ou assuntos profanos, nem fofocas. Todos pareciam se preocupar em manter esta aura misteriosa, ou, quem sabe, todos eram como ele, cansados de convenções humanas, o contrato social não regia aquele grupo – obedeciam a outras regras que ele desconhecia.

No American Bar do salão de festa reinavam novidades, o barman sempre inventava um novo drink com frutas tropicais como o cajá, acerola e outras. Ninguém bebia até cair, parecia haver um controle velado em relação aos excessos e até ele desenvolvera um certo autocontrole – o grupo não se rebelava em momento algum e Rip seguia a vontade do grupo: Festa! Festa! Festa! Festaaa! Festaaaaaaaa!

E o mambo corria solto até o amanhecer e alguns mergulhavam no lago, até serem cuidadosamente resgatados por um máscara vermelha...
Os máscaras vermelhas eram fantásticos, cantavam, dançavam, motivavam, vigiavam, treinavam os passos, apresentavam as novas músicas e ritmos, preparavam drinks e comidas surpreendentes. Eram adorados por todos, ótimos senhores da festa, perfeitos cabeleireiros, fantásticos manicures e incríveis alfaiates. A festa não tinha fim e não podia parar. O Rei e a Rainha escolhiam o príncipe e a princesa da festa.
Rip fora escolhido príncipe duas vezes, numa festa de congada e em outra festa de Boi Garantido de Paritins. Quase vencera numa noite flamenca e depois numa noite de tcha tcha tcha.

Notou cabelos brancos surgindo um belo dia de garoa e festa mexicana enquanto estourava cabaças de doces. Correu para o salão na manhã seguinte e ganhou seu primeiro de muitos tingimentos durante toda a extensão da Festa Sem Fim – que era como muitos chamavam e sussurravam entre si, longe da presença dos máscaras vermelhas – e assim parecia para Jose Rip Van Winkle. Não há bem que dure para sempre e nem tristeza que comande toda uma vida, mas ali parecia uma grande foto de formatura ou de casamento, um instante alegre congelado no tempo.
O que importava é que, na prática, muitas mulheres da festa começaram a requisitá-lo nas danças devido sua evolução como dançarino e isto passou a render beijos calientes. As pessoas começavam a demonstrar, ainda que discretamente, uma carência de contato e paixão, que a música não mais supria. Alguns começaram a dançar tango nos cantos do salão, mesmo que a banda tocasse outro estilo musical, esta incoerência foi combatida com discrição e vermelha pelos máscaras vermelhas – logo o desvio fora quase que eliminado, mas o tango não!

- Que a festa não tenha fim! era seu brinde mais freqüente quando tinham a oportunidade de brindar e falar mais abertamente no salão de festa. Era tim tim tim de lá, tim tim tim de cá e no dia seguinte nova festa temática junina com sua quadrilha, anos 70, anos 80, anos 90, festa dos tabernáculos, pratos gregos quebrados, baile da saudade, ritmos indianistas, caribenhos, africanos, danças típicas portuguesas e, indiferente aos participantes da Festa Sem Fim, algo aconteceu, ineroxavelmente: mais de quinze anos se passaram e nenhum dos dançantes convivas se atentou a isto - ou se preocupou efetivamente...




Um dia, em meio há festa regada a cuba libre e whiskey a gogo, um senhor de cabelos grisalhos e terno preto impecável com sapatos brilhantes atravessou o salão em direção ao trono dos reis, o amalucado Puck o observou sem gracejar, a música , uma camarata, prosseguia; todos que o viam paravam magnetizados. Rip nunca o vira, engraçado que não usava máscara. Seu par não parecia reconhecê-lo e nenhum outro casal próximo sabia ou queria responder. Algo novo estava prestes a acontecer...

O rei e a rainha se ajoelharam perante o homem, este os ergueu educadamente e com um sorriso constante sussurrou aos ouvidos de ambos e estes, armaram um sorriso. Parecia que o dia de homens vazios circulando pelo baile se acabara, finalmente uma emoção espontânea e sincera no rosto de alguém. Graças ao senhor misterioso.
O rei, pela primeira voz, soltou a voz encobrindo o som da banda e gritou efusivo enquanto se desfazia de sua máscara:
- As taças, sirvam champanhe a todos...pela última vez, amigos!
O ambiente foi inundado por esfuziantes e continuas palmas e misteriosamente pareciam ecoar nas caixas de som – como a multiplicar o calor do momento – a tecnologia a serviço de um momento solene e esperado por muitos, como pode notar Rip, entre alegre e confuso. O que seria tudo aquilo afinal?
As taças foram distribuídas, as champanhas despejadas e todos riam com gosto longamente e se abraçavam – indiferentes a presença do Senhor Grisalho. O rei emendou um discurso:
- Queridos e festeiros comensais, queridas dançarinas, vosso rei tem uma declaração a fazer – como todos já devem imaginar – isto trará felicidades a todos. Saibam que a obra de nossas mãos não foi vã, enfim alcançamos o prêmio de nosso labor. O Senhor Wonka, idealizador deste projeto inédito, trouxe hoje a notícia em primeira mão. A Festa Sem Fim é um sucesso e, de longe, não há quem possa imitar o que fizemos aqui por quase 20 anos. Hoje não vamos encostar nossas cabeças nos travesseiros de nossos dormitórios, vamos para casa, para nossa família, vamos conhecer um admirável mundo novo, que nos espera como heróis! Graças ao nosso mecenas Sr Wonka – aplausos obliteraram o discurso temporariamente – e a nossa Rainha , juíza isenta neste desafio que dedicou sua vida ao meu lado para comprovar a veracidade deste recorde e também graças ao empenho pessoal de todos aqui, tenho uma informação – nova interrupção sonora com palmas, assovios e gargalhadas, o grupo parecia adivinhar e antecipar a comemoração.
O Rei ficou vermelho, tirou a coroa e antes que perdesse a compostura real apresentada por vinte anos, abraçou a Rainha e disparou sem dó, num fôlego único:

- Vencemos o desafio e superamos o recorde anterior listado no Livro de Recordes e esta última semana de festividades foi transmitida para o mundo todo com sucesso de audiência. Todos nós temos nossos nomes grafados no Guinness com a entrada da Festa Sem Fim em seus anais e cada um recebera, por esta vitória e por sua persistência uma soma em dinheiro que fará tudo o que passamos aqui valer a pena. O contrato que assinamos foi bizarro, mas fantástico. Quem imaginaria ter um emprego que é debutar eternamente, festejar sempre e sempre – rir, folgar, dançar e dançar e dançar?
- Vitória senhoras e senhores, vitória querida. Estamos no Livro dos Recordes. Eu tive um sonho e hoje ele se realizou!!!
- Obrigado Senhor Wonka, obrigado a todos, grato a todos que estão nos assistindo e grato a você minha Rainha.

Rip parecia morto, pasmo, chocado. Então este era o tal do Guinness, um livro de recordes e todos ali eram pagos para festejar. Seu estômago embrulhou.

- Vamos...bem, sem ser repetitivo após todos estes anos, mas isto é algo para comemorarmos, então vamos festejar esta última noite e depois cada um poderá ver seus familiares e começar uma nova vida e usufruir desta vitória tremenda – que nunca será esquecida; não é Senhor Wonka?

O velho de cabelos grisalhos sorriu e falou ao microfone:
- Agradeço a todos por terem acreditado no meu sonho e no sonho do Rei, lutamos para dar a melhor estrutura e as melhores festas a cada um de vocês, sem deixar cair na rotina ou acontecer muitos temas repetidos. Contamos com uma equipe empenhada em criar festas e mais festas, todo ritual festivo que a humanidade praticou nestes milênios, vocês reviveram nestas décadas. Parabéns! Saibam que resistimos a planos econômicos absurdos, Plano Collor, Plano Verão, URV, Plano Real, abertura do mercado brasileiro, a chegada da internet com seu alcance mundial, o muro de Berlim caiu, as Torres Gêmeas do World Trade Center também e as crises diversas que insistem em atrapalhar nossa caminhada em busca de nossos tão almejados sonhos. Repito, sou grato a cada um, de todo meu coração, a Festa Sem Fim dificilmente sairá do Livro dos Recordes. Vocês merecem a quantia que vão receber conforme estipulado no contrato.

José Rip Van Winkle despertou do sonho, voltar para a velha vida? Foi dela que ele fugiu. O peso dos anos quase o arremessou no sonho e o fez suar frio e respirar sofregamente – era o único a não rir, o único a não tirar a máscara, tolo. Foi se afastando, assustado, que loucura era aquela? Como pudera se envolver com esta gente, estes lunáticos, desligados da realidade. E por vinte anos? Como pode andar com estranhos por vinte anos e não notar algo de errado em tudo aquilo? Tudo fora cômodo, irresistivelmente cômodo. E sua ex-esposa? E seus filhos? E seu emprego que a pouco abandonara para andar sem rumo e parar ali naquele sítio afastado do centro da realidade. Pouco? Vinte anos se passaram, o que faria agora com cinqüenta anos? O peso da idade quase o fez cair, o estômago revirava – e daí que existiam pessoas que recomeçavam a vida com 50, 60, 70 e oitenta anos? Pela primeira vez teve autêntica vontade de fugir dali, que papel fizera, estava envergonhado e não queria ser descoberto pelos parceiros de dança. Fugir...e foi o que fez. Discretamente.
Pegou suas roupas surpreendentemente conservadas no armário do dormitório masculino que fora dele por vinte anos. Vestiu e saiu sem se despedir de ninguém, se ocultando nos cantos escuros; nas folhagens e veículos de filmagem. A distância viu os dois seguranças que haviam permitido seu acesso, que peça lhe pregaram, mas não iam rir no final, ele sumiria como fumaça daquele local e pegaria a estradinha que o conduziria ao mundo real.
Era uma noz estragada no meio das boas, queria distância dali, como explicaria seu envolvimento com aqueles malucos, sua família entenderia sua atitude de se isolar devido ao castelo de cartas desabando que era sua vida? Entenderiam que havia ficado vinte anos numa festa de arromba sem fim? Isto era mais que sair para comprar um maço de cigarros e voltar dias depois. E quanto a deixar toda aquela comilança e música para trás? Bem-casados, brigadeiros, pasteizinhos de belém, espetinhos de carne, sorvetes, sucos, drinks, músicas, danças sem fim. Agora acabado, um fado sussurrava no seu ouvido, um triste fado. Tudo acabado, como ele, acabado, sem prêmio, não juntara nada, escorreu entre os dedos qualquer ilusão de amigos ou familiares.

- Chega, sacudiu a cabeça determinado e pensou, chega!

- Vou ver meus filhos, retomar meu relacionamento com minha esposa e recuperar meu emprego, não há bem que dure para sempre, tampouco mal. Pensou tentando se animar, enquanto as suas costas, o som de festejos e fogos ia ficando distante, distante, esvanecendo de sua alma.

Rip voltou solitário para estrada e retornou pelo mesmo caminho deserto e florido, bem, isto só nas suas lembranças, ruas asfaltadas, condomínios de casas, de prédios iluminação, moradores de ruas, favelas, carros e infinitas motos. As pessoas carregavam um aparelhinho estranho que vivia a incomodá-las, como um despertador desregulado, um aparelho que parecia substituir orelhões, cabines telefônicas, telefones fixos, um tal de telefone celular e as pessoas tiravam fotos com ele, ouviam música e até assistiam televisão nas ruas. E o telex? E o fax? Agora se falava em Net e um sem fim de palavras americanas – fast food, coach – era difícil entender as pessoas em certos momentos. Gírias estranhas demais para seu ouvido desacostumado.

Na cidade, viu sua empresa a distância e perguntou para um taxista que abordou: Está aberta hoje?
- Não, foi comprada por uma empresa chinesa e mudara daqui de São Paulo para a Argentina este mês.
Rip ficou aturdido, terei que arrumar outro emprego, meditou.

Seguiu para a Rua das Flores Negras e achou sua casa, aliás, apenas um terreno baldio, a casa fora demolida com mais outras, uma placa indicava que em breve um daqueles prédios horrorosos, como o Edifício Joelma da Av Paulista e os edifícios do Centro de São Paulo, seria erguido ali. Resolveu seguir para a casa da ex-esposa, na esperança de encontrar um rosto conhecido, qualquer rosto...

Respirou fundo e tocou a campainha, um jovem atendeu.
- O que deseja?
Rip ficou admirado.
- Junior, é você?
O rapaz de cabelo espetado e piercing na boca respondeu:
- Sou sim, e você – conheço?
Rip abriu os braços e emocionado, com olhos marejados, disse com voz embargada:
- Sou seu pai, meu filho!
O rapaz olhou vazio, não se impressionou.
- Quer dizer que você é o meu pai? José Rip Van Winkle, que desapareceu vinte anos atrás? Não creio.
Rip, sem graça. baixou os braços.
- Chame sua mãe, verá que digo a verdade.
- Minha mãe esta trabalhando...
- E você deve ter uns 26 anos, onde está sua esposa, filhos, onde você trabalha?
O rapaz torceu a cara e acenou para que entrasse.
- Moro aqui com minha mãe. Namoro e estou desempregado há 8 meses, Rip.
Rip sentiu o coração acelerar.
- E sua irmã Mara? Onde está?
O rapaz o encarou com frieza.
- A Mara morreu num acidente de avião 2 anos atrás, quando viajava a negócios para a Wonka Empreendimentos. Você tem uma Netinha, mas a guarda esta com o pai dela e ele mora no Líbano, é muçulmano. Nunca mais a vi...
Os olhos de Rip marejaram de novo. Falou um pouco sobre sua trajetória até ali. Ocultando os eventos da Festa Sem Fim.
Logo, sua ex-esposa chegou. O filho explicou toda a história de Rip de forma um tanto quanto irônica, em determinados momentos.
- Bem, não me interesso onde foi. Foram vinte anos criando nossos filhos, trabalhando fora e limpando a privada dos outros depois que meu segundo marido morreu. Digamos que consegui ser feliz sem você apesar da tragédia com a Mara e do atual desemprego do Junior. Você não é necessário em nossas vidas, da mesma forma que vinte anos atrás você foi embora sem lutar por mim e por nossos filhos. Pode dormir em um quarto vago que temos até arrumar uma ocupação e um lugar definitivo para morar.
O jovem adulto ligou a tevê de plasma e interrompeu a mãe.
- Olha só mãe, a Festa Sem Fim entrou para o livro do Recordes como a festa mais longa do planeta. Não é fantástico?
A mulher abatida sorriu para o jovem, condescendente.
- Sabia que o Brasil ia levar esta...somos o número um neste quesito. E o prêmio que aquela turma vai ganhar por vencer este desafio. Ah se eu tivesse me inscrito quando tive a oportunidade. Sabia que o sítio onde realizaram as festas é perto de nossa cidade, quem ia imaginar...
O rapaz cortou a mãe novamente:
- Pois é, mãe, mas quem ia cuidar de mim e da Mara, né?
A mãe sorriu amarelo.
- Tem razão querido, tem razão. e suspirou profundamente.
Rip rumou para o banheiro, assobiando distraidamente uma valsa.
- Vou tomar um banho, o banheiro é nesta direção, ah, obrigado.

A mulher, de cabelos grisalhos, forçou um último sorriso e disse sarcástica:

- Sinta-se em casa, Rip, sinta-se em casa! e desabou no sofá, tentando aliviar todo o peso do mundo que carregava consigo.








Fim




Você está saindo de Zona Crepuscular... como tantos, Rip viveu indiferente as conseqüências na vida dos amigos e familiares. Todos perderam com seus atos, será que na sua vida, o pecado capital esta voraz a consumir sua vida, aprisionando os que ama?

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Hic Sunt Dracones







Eles caminham entre nós

Jeremias sabe e isto o preocupa, veja o porquê em:

Hic Sunt Dracones


Anos atrás este vilarejo oculto nas montanhas era povoado e cheio de vida, crianças brincavam na velha fonte que ficava próxima do coreto; os idosos proseavam sobre velhos amores, sobre a ascensão e queda dos amigos e sobre os estranhos desaparecimentos que ocorreram no passado e volta e meia ocorrem no presente – alguns falavam de sonhos estranhos com vultos, serpentes e corujas que ocorriam antes destes estranhos sumiços. A cidade entrava num estado de tensão, as beatas e os religiosos rezavam e, por fim, alguém sumia e por meses tudo voltava a normalidade, a família abatida vivia seu luto. Até a ocorrência de um novo sumiço inexplicável...

Quando Bill Cascata desapareceu em plena praça central em meio aos festejos de todos os santos, a cidade atingiu, por fim, seu limite do pânico; uma milícia foi rapidamente formada e invadiu plantações, cavernas, descampados em perseguição ao seqüestrador – porque Bill era o mais amado, o mais querido dos moradores de Cupim.
Bill ajudava tanto ricos quanto pobres, religiosos e não-religiosos, empregados e desempregados, camponeses e urbanos – se estivesse ao alcance de Bill, ele o faria.

Um dos grupos que permaneceu na cidade chegou perto, pois na confusão parte da cidade tomou um rumo e um grupo pequeno seguiu uma pista dada por um bêbado - a história que os membros deste grupo contam é esta:

Naquele dia uma pessoa viu em meio a cantoria e a procissão quando uma sombra saída de uma viela próxima ao desfile abraçou Bill e o puxou para a escuridão da viela – pode ouvir um grito, era o que parecia e isto não tinha a ver com a bebedice em que se encontrava. A distância não pode estabelecer se era homem, mulher ou bicho o que atacara Bill – se fosse uma onça, era das grandes. O grupo então entrou na viela que o bêbado – Dimas era seu nome – indicara e invadiu casas, subiu em telhados. Em meio a caçada o grupo teve dificuldade em entrar no velho casebre do Tom, parecia uma fortaleza escondida por trás de velhos madeirames na parte mais degradada da cidade a qual aquela viela conduzia. O Tom era um sujeito expansivo e falador, conhecia muitos e muitos casos e contava histórias sobrenaturais ao redor de fogueiras na parte mais escura da pracinha como ninguém. Um dos perseguidores por fantasia ou pura maldade jurou ter visto um vulto no telhado do casebre do Tom. Partiram para lá. Quando conseguiram arrombar a porta da casa de Tom, um cheiro forte, como de carne de açougue estragada escapou do interior escuro, revirando o estômago de alguns e assustando outros.
“O que Tom guarda aqui?” Indagou Regis “Não sei, vamos entrar logo, antes que a coisa fuja!” completou José com um pedaço de pau na mão. Jeremias que integrava o grupo se adiantou e invadiu a sala escura.

Vasculhando a casa em completa escuridão, tropeçando em velhos móveis algo extraordinário aconteceu – num canto escuro, Jeremias encontrou uma sombra com substância, grande como um homem, incrédulo, Jeremias tocou a substância escura com um cabo de vassoura, a coisa guinchou e se jogou em sua direção derrubando-o e beliscando de forma pegajosa a sua mão enquanto saltava por cima dele. A coisa se atirou contra uma janela destroçando-a, em meio a gritos de “Pega, pega!” e escapou da casa para nunca mais ser vista.

Uns falaram em chupa-cabra, outros em Lobisomem, outros em aparição e a todos que indagavam Jeremias sobre a coisa que enfrentara, ele dizia com ar assustado:
- Só sei dizer que era uma coisa forte, escura e não era nem homem, nem animal, sei lá, parecia um filhote de cruz-credo!
Para os amigos mais próximos ele segredou algo apavorante:
- A coisa me tocou e sua mão era fibrosa e úmida e tinha um hálito estranho, agradável, os olhos totalmente negros e sua face, era em parte a face de Bill e a outra parte a face de Tom – totalmente desigual, desproporcional. E a coisa sorriu para mim enquanto me derrubava – não quero mais ver aquele sorriso. Depois disto, Jeremias virou um recluso, trancado em casa, não atendia ninguém – passaram alguns dias e por fim, desapareceu da cidade. Muitos acreditam que foi embora e logo, a versão mais apavorante circulou e as pessoas, supersticiosas ou fanáticas religiosas começaram a ir embora, em questão de meses Cupim se tornou um vilarejo fantasma; pois os sumiços prosseguiram e atingiam qualquer pessoa, em qualquer horário. Ficou endêmico. A lenda tomou conta das outras cidades próximas, histórias apavorantes circulavam – muitos diziam ter visto o espectro de Bill em encruzilhadas, outros que um espectro com a aparência de Tom atacava os rebanhos próximos e muitos dos que restaram não andavam mais pelas estradas floridas sozinhos. Andavam acompanhados, a pé ou em suas bicicletas, com armas diversas, facões, armas como arcabuzes, garruchas, revólveres e espingardas.
Jeremias morava agora há quilômetros de Cupim e aquela noite sobrenatural no barraco de Tom ficara dez anos no seu passado. Hoje, casado e com um filho de oito anos levava a vida como comerciante de calçados em Formigas. Sua esposa sabia um pouco sobre aquela noite macabra, mas isto era passado enterrado e tinham outras preocupações mais sérias e presentes como o casamento, a educação do filho e os estoques da loja.

Jeremias chegou a Formigas para morar com seus tios, já que seus pais haviam morrido há anos, era a terceira cidade que morava desde que fugira de Cupim, os pesadelos diminuindo aos poucos – o pesadelo daquele rosto disforme se apagando lentamente. Logo começou a reconstruir sua vida. Com a morte dos tios herdou a loja de sapatos que ajudara a construir e sua vida agora parecia caminhar na direção de uma cômoda e perpétua felicidade num vilarejo do interior. Assim pensava, até que os sonhos com vultos, corujas e serpentes voltaram...

Não deu crédito aos sonhos a principio, achou tratar-se de stress passageiro com a crise atual ou lembranças bloqueadas que emergiam de seu subconsciente segundo lera em velhos livros do tio falecido. Mas um sonho em particular e um fato real o fizeram temer o pior. O sonho ocorrera dias antes da festividade de todos os santos da qual não participava mais, pois se convertera ao protestantismo anos atrás.
No sonho, Bill conversava com o velho Macedo e o assunto de ambos era no mínimo assustador. O velho Macedo era uma figura curiosa, com sua velha bengala de cristal e suas falas confusas – só que no sonho, conversava cortesmente com Bill a beira de um velho barranco próximo de seu barraco na periferia de Cupim e ao lado do velho lixão da cidade. O assunto girava em torno de morte e caçadas:

- Então agora você está no corpo do Bill? Afirmou o Velho Macedo
- É um dos melhores em anos, tem agüentado bem e procuro não consumi-lo como fiz com os outros – uma hora terei que buscar outro, mas já faço idéia. De qualquer forma agora restamos só nós dois em Cupim e minha esperança era possuir seu corpo. Respondeu Bill com um olhar de cobiça.
O velho não pareceu se intimidar:
- Como você pode ver, isto está fora de questão, eu não vou ceder meu corpo a você e nem para os vermes da terra. Corpos resistentes como este são raros. Ficamos assim, cada um no seu estádio.
- Cada um com seu mapa cartográfico para marcar terreno, nosso acordo de mútua proteção não tem mais sentido para mim.
Bill fez um último ricto de ameaça com seus olhos totalmente negros, o Velho Macedo virou as costas a ele, com desdém.
- Então você não tem medo de mim? Bufou Bill no sonho.
- Você, pequena criatura é que deveria me temer, estou reservado para o fim dos tempos e só faço aguardar, por isto vou ficar aqui em Cupim. Se alguém deve sair, este alguém é você – não sou um humano indefeso que você espreita e caça em noites escuras, não vê que nem os vermes da terra ousam me arrastar para as profundezas?
O Velho Macedo pareceu dobrar de tamanho e virou-se com um brilho escarlate na direção de Bill e sussurrou entre os dentes, com horrendos olhos vazados, olhos sem órbitas, vazios, profundos e murmurou:
- Vá embora agora, criatura!
Com a ameaça, Bill recuou quase caindo no barranco, guinchou em resposta e por trás do luar enevoado, se atirou no barranco, só que não houve um baque do corpo, e sim, um bater de asas – um vulto sumiu no horizonte enevoado do sonho.
O velho Macedo pareceu olhar do sonho para mim, por um momento, pensativo e voltou a sua forma claudicante e sussurrou enquanto se apoiava em sua bengala apodrecida:
- Já vai-vai tarde criatura, pesti-pestilenta.

O sonho se desfez e Jeremias acordou suado na cama, ao lado de sua esposa – foi até o quarto do filho, este dormia tranqüilo. Na cozinha pegou um copo de água e se sentou no velho sofá da sala, olhando para os reflexos na janela, talvez a procura do vulto esvoaçante de Bill, apenas viu a noite se tornar dia.

No dia seguinte, o pior aconteceu, pois além do sonho e da péssima noite, recebeu uma visita inesperada em sua loja. Enquanto estava ajoelhado demonstrando um sapato para uma cliente, sentiu um odor familiar, um vulto pegou uma das caixas de sapato e ficou em pé observando-o a distância, esperando ser atendido. Quando olhou com atenção a figura impaciente – estremeceu – era o velho Bill em pessoa. Pediu um momento para Bill e este aquiesceu – não o reconhecera. O hálito perceptível era idêntico aquele que sentira no casebre do Tom. Concluiu o atendimento com sua cliente e pediu que a outra vendedora atendesse Bill neste ínterim, afastou-se e lá do estoque observou o homem comprar um par de sapatos após prová-los. O reflexo no espelho parecia distorcido de onde observava cliente e vendedora. Bill parecia menor, do tamanho de Tom, as pessoas encolhem com o passar dos anos, não é isso? Tanto assim. Uma coisa o perturbou, um leve oscilar no andar de Bill que tinha certeza absoluta pertencer ao velho Tom – em cidades pequenas notamos tantas coisas nas pessoas, temos tempo para isto, afinal o tempo passa em outra velocidade. Tinha certeza de notar trejeitos ora de um, ora de outro em Bill. Com sua sacola, o cliente foi embora, totalmente indiferente ao drama e a tensão de Jeremias.
Jeremias esperou e se dirigiu ao caixa, tinha uma curiosidade imediata; o cliente pagara com cheque – o nome no cheque? Antonio A. Callado. O nome de Tom?
O cheque era de Tom, o corpo de Bill, o manquejar do Tom, o reflexo no espelho de Bill, sua mente girou, sentiu pontadas no alto da cabeça. Pensamentos voaram como moscas pela loja. Coisas estranhas caminham entre nós, com certeza, aqui há dragões.

- Jeremias. Chamou a vendedora assustando um lunático Jeremias:
- O quê? Cortou secamente, com um olhar frio endereçado a funcionária.
A vendedora o observou surpresa – seu chefe estava muito estranho hoje. Respirou fundo e disse, sem interesse:
- O seu cliente deixou um recado para você “ Diga ao meu velho amigo Jeremias que gostei muito de sua loja, nunca vi nada assim em Cupim”.

Jeremias sentou-se num dos bancos que os clientes sentavam para provar os sapatos e viu observando seus sapatos marrons no espelho a frente enquanto tocava sua testa.

Deste dia em diante as dores de cabeça nunca mais cessaram.



Fim




Você está saindo de Zona Crepuscular preste atenção em estranhos odores adocicados e vultos que insistem em aparecer, porque aqui; aqui há dragões

domingo, 4 de janeiro de 2009

Viajantes do tempo













E se pudéssemos viajar no tempo?

Vincent pode nos dizer como foi para ele:


Amor se deslocando


Dubois correu para o lado de Vincent, Lautrec e Edith também. Todos eufóricos com a nave temporal dourada. Um leve chiado indicava que estava operante.

- Não disse que ia funcionar? Até já fiz algumas viagens-teste!

Enquanto dizia isto, orgulhoso, manipulava um manche e um teclado “febrilmente” e a nave agora cortava um mundo cinza, branco e negro, um vazio entre tempos – como se estivéssemos fora da estrutura da realidade – cortando atalho entre buracos entre tempos. Dubois deu um breve abraço de congratulação em Vincent, Edith gritou elétrica:

- Vamos para o futuro, Vincent, rumo ao amanhã! – Lautrec observava tudo, a euforia dele fora substituída por um olhar distante, indiferente. Vincent procurou ignorá-lo – sabia que só estava ali para se assegurar da volta de Edith, as palavras dele foram exatamente:

- Se vocês não voltam, ou se perdem no rio dos tempos - buracos de minhocas e estas coisas, estando com vocês posso cuidar de minha Edith.

Foi obrigado a concordar e aceitar o grandalhão no grupo; quanto a Dubois era um ótimo e excêntrico engenheiro, consertador de coisas e criativo solucionador de pequenos problemas. Útil para viagens no tempo e sua irmã, era a convidada especial para esta aventura, divertida, ousada, palidamente linda; seu único defeito: Lautrec, o grandalhão. Eram jovens, talvez eu crescesse ainda, pensou Vincent: talvez Lautrec diminuísse, emagrecesse, encolhesse – precisava pensar numa arma de raios para ajudar com esta questão. Outra hora...

Vincent ajustou os comandos e avançaram no tempo, 1000, 2000,3599 anos...
A nave estacou num continuum, branco cinza e negro, fora da realidade, saltou por um buraco de minhoca e caiu no ano desejado. Uma enorme janela nos mostrou o futuro e uma voz atrás de mim observou uma situação curiosa:

- Vincent, se este é o futuro, por que a moda vitoriana, indagou Dubois enquanto observava algumas pessoas a distância e seu estilo de vestir.

- É verdade, seria uma moda retrô? Sugeriu Edith.

- Para mim, você viajou na direção errada. cortou seco, Lautrec.

Vincent olhou sorridente para todos: - Estamos em 3599 senhora e senhores, este é o futuro. Bem, vou abrir outra fenda temporal em algum lugar que não esta Europa, acho que não estamos vestidos adequadamente para este passeio e creio até que este chapéu cônico e vermelho do Dubois e meu relógio de peito não passarão despercebidos. Sem comentários Lautrec, cada um se veste do jeito que gosta e não critico seu gosto para sapatos.

Lautrec ignorou Vincent e se atrasou em olhar a fenda que agora se fechava, pessoas passeavam por uma rua estreita de paralelepípedos e acreditou ver a distância um pedacinho do arco do triunfo – um sentimento cívico se apossou dele, até que notou que um senhor alto, de paletó e sobretudo o observava de um canto oculto da rua. Jurou vê-lo pegar algum instrumento incompatível com a época e apontar em sua direção, mas a fenda se fechou antes de ação do cidadão do futuro gerar algum efeito neles.

- Vincent, acho que aquele é o futuro mesmo e já sabem de nós: comentou um preocupado Lautrec.

Vincent deu de ombros.

- Impressão sua. Vamos agora visitar um lago com uma bela floresta no período medieval, temos pães, sucos e vinho. Quem sabe podemos ver um dinossauro depois de nosso lanche? Vincent ajustou a máquina que zumbiu novamente e chegou ao destino programado. Vincent visitara algumas localidades sozinho e isto facilitava os deslocamentos temporais e evitava surpresas inesperadas.

Lautrec recusou descer da nave e logo os três aventureiros estavam entretidos num passeio pela floresta de árvores milenares, seguido de um café da tarde agradável. Estenderam uma toalha vermelha num descampado próximo da nave e começaram um papo animado sobre viajantes do tempo, guardas temporais que vigiam as linhas do tempo, vigilantes das linhas do status quo, sugeriu Vincent. Caso existissem.

Um estrondo chamou a atenção do trio, como um som de trovão. O sorriso de Vincent por estar ao lado da bela Edith sem o grandalhão a importuná-lo se desfez. O preço por estar ao lado da graciosa moça num vestido negro com seus cabelos mais negros ainda se tornou rapidamente alto. A fenda temporal se fechara e a máquina dourada desaparecera. Dubois gemeu e puxou a irmã para perto de si – a mesma parecia próxima de um estado de surpresa, incredulidade e choque.
- Ah, Lautrec! Gritou desesperançado Vincent, olhando a vegetação ao redor, o lago plácido e a toalha estendida no chão, com o resto do café da tarde. A fome passara e um embrulho no estômago crescia lentamente.

“ Se o controle externo ao menos estivesse pronto...” tocou o relógio no peito e se desesperou ainda mais Vincent...

- E agora Vincent? Uma súplice Edith o observava olhar o vazio antes ocupado pela nave dourada, sugada para sabe-se lá qual período da humanidade ou do planeta.

Vincent forçou um sorriso de ânimo e coragem e gesticulou confiante:

- Vamos esperar um pouco, pode ter sido uma flutuação temporária na fenda, a nave pode ainda estar aqui, vamos manter distância caso ela se materialize daqui a pouco. – ele queria acreditar muito naquela possibilidade. Muito mesmo.

Para surpresa de todos, a fenda abriu e se fechou e um sujeitinho vitoriano alto com um chapéu coco e um pequeno aparelho se aproximou. Tinha uns sapatos engraçados, como pode notar Vincent, que olhava atentamente agora o aparelho na mão do homem, de forma ansiosa até...

- Gostou do meu brinquedinho? Um gadjet muito adequado para alcançar vocês. disse num inglês britânico sombrio que lembrava alguém que Vincent conhecia, mas quem?

Vincent respirou fundo e rapidamente Dubois se precipitou sobre o cavalheiro anacrônico despejando milhares de palavras, interjeições e pedidos, seguido de perto por Edith que com um olhar furtivo dirigido a Vincent solicitava que os acompanhasse num pedido de misericórdia ao estranho.

O sujeito estava irritado, se apresentou como vigia temporal e estava prendendo o trio por tentativa de danificar a estrutura espaço-tempo – o vigilante das linhas de status quo, pensou amargo Vincent. Ia dizer algo, mas ao pensar naqueles sapatos e ver de relance uma tatuagem e parte de uma cicatriz que a mesma tentava ocultar esteticamente no punho do homem, silenciou, pois sabia com quem estava tratando: Lautrec!

Agora tinha certeza, era Lautrec, ou um Lautrec; a estratégia para escapar daquele embrulho agora seria simples. O inimigo era conhecido e se divertia em ignorar os apelos de Dubois, alternando olhares ternos para Edith e ocultamente ameaçadores para Vincent.

Hora de agir, pensou o construtor da máquina do tempo e tomou a frente dos irmãos e negociou diretamente com o agente temporal:

- Sr L. entrego as plantas da máquina do tempo que carrego comigo, destruo as maquetes que tenho na minha linha do tempo e juro não me envolver mais com viagens no tempo, creio que isto será suficiente para seus superiores. Esta foi minha primeira infração e isto deve servir como atenuante para mim e meus companheiros. Não nos prenda em nenhum limbo, deixe-nos voltar para nossa época e não se fala mais em amores..erhn..quer dizer, viagens no tempo. Aqui tenho um controle da nave, mas como deve ter percebido, só pode ser operado de dentro da própria nave.

- Por enquanto, como bem sei – foi a resposta do agente, recolhendo o controle e as plantas.

Vincent comparou rapidamente os controles que ambos carregavam e achou certas semelhanças externas entre ambos, um parecia a evolução natural do outro. Procurou silenciar. Alguém se apossara da tecnologia e soubera aproveitar o conceito de saltos no tempo via buracos de minhoca, a miniaturização seria o próximo passo e parecia que o Lautrec com seu bigodinho ridículo a frente de Vincent parecia ser esta pessoa. Ele e seus possíveis superiores, se é que existiam. Mas sua atitude de rendição apresentara resultado:

- Estão liberados – disse após um tempo, enquanto olhava para Edith. Abriu uma fenda no espaço-tempo com alguns apertos e ajustes em seu aparelho e exigiu que o trio atravessasse a fenda oscilante cinza branco e negra.

Um Vincent resignado e um casal de irmãos animados com o desenrolar positivo da situação atravessou e partiu para um dia chuvoso europeu em sua própria época, uma semana depois do primeiro salto.

Lautrec já estava lá e contou uma história cabeluda de como tinham confiscado a máquina do tempo e sumido com todo o projeto enquanto os três estavam fora. Vincent só tinha olhos de frustração e raiva para a tatoo no punho de Lautrec.

Edith notou alguns cabelos brancos em Latrec e o mesmo acusou Vincent por ter sofrido efeitos colaterais na viagem, Dubois questionou tal possibilidade, pois só o grandalhão sofrera tal efeito. Vincent sabia a resposta, mas se calou. As viagens no tempo tinham sido cortadas de sua vida para sempre, não adiantava polemizar.

A forma como conduziu as coisas naqueles dias gerou um prêmio anos depois: casou com Edith para desespero de Latrec. De alguma forma, Edith soubera escolher a pessoa certa.

Vincent não podia pensar em algo melhor para sua vida, ainda mais quando Edith relembra aqueles dias e faz a famosa pergunta - quando estão a sós em sua loja de vinhos de época em Toulouse:

- Por que chamou aquele sujeito de Senhor L. aquele dia?

Com um gracejo Vincent explicava que era o apropriado para o momento, que havia sido um improviso e que o importante é que ajudara a escapar aquela situação temerária no período medieval.

“Afinal o tolo se achou pressionado a agir rapidamente e concordar com meus termos, sem ser desmascarado na frente de sua paixão – minha futura esposa”. pensou Vincent.

Mas o gostoso mesmo, para o ex-viajante do tempo, era apreciar os sabores únicos de seus vinhos envelhecidos e contar sua aventura temporal para a sua pequena filha Beatrice e diverti-la com os desdobramentos e a participação de sua mãe. Fazendo a garotinha correr para os braços da mãe e jogar beijos para o jovem aventureiro.

Vincent só não esperava o pedido da jovem Beatrice um certo dia:

- Pai, você viu a Torre Eiffel pessoalmente e eu só posso ver sua holo-imagem. Quero muito conhecê-la! Que tal uma última viagem maravilhosa?

O viajante do tempo tamborilou no velho relógio dourado que ostentava no peito e que escapara a atenção do Sr L. por se tratar de uma suposta excentricidade – um último brinquedo no qual trabalhava ocultamente nas horas vagas. Pensativo e sorridente, pegou o velho despertador na mão e olhou para seus ponteiros, Beatrice tocou no aparelho curiosa enquanto o pai sussurrava em seus ouvidos:

- Vou pensar a respeito querida, talvez possamos realizar esta viagem, talvez!






Fim




Você está saindo de Zona Crepuscular e viajando no tempo um dia por vez, faça uma boa viagem pelo ano de 2009!

domingo, 23 de novembro de 2008

Cortejo
















Cortejo










PESTIS ERAM VIVUS - MORIENS TUA MORS ERO.






Zona Crepuscular localizou manuscritos antigos para a 2ª temporada: A vida passa?


Zona Crepuscular – acesse contos inesperados que ocorrem na hora mágica... nem dia, nem noite.


Neste post você observará paralisado “O Cortejo”



Um lugar qualquer em São Paulo anos atrás:

Eu me tranquei no banheiro, fechei os olhos e a água me desligou do mundo.

Só escuridão...silêncio...atemporalidade.
Meu corpo flutuou e já não éra mais corpo, um espelho com olhos que nada viam, só o Nada Absoluto, um negror...
Comecei a perder noções, minha idade, meu nome, meu presente - eram névoas desconexas.
Por longo tempo vaguei com um vazio interior, sem nada expressar - vagando, negando, vagando, olhos vítreos...

Lentamente, num crescente quase imperceptível, o som de uma banda começou a se fazer ouvir...as batidas eram ritmadas, fortes, contínuas "tum, tum, tum, tum"...pareciam coordenadas por passos dados, o crescente aproximando-se à minha frente - uma luz amarelada, primeiro um ponto ínfimo, aos poucos se intensificando em minha direção. O que seria?

A luz se intensificando, o som crescendo e eu, derivando...

Por horas e horas ouvi e acompanhei o estranho "barulho iluminado na infinita escuridão"...
O som tornou-se presente e um cortejo de seres começou a transfigurar-se à minha visão - pensei-os humanos e eram, mas não como eu esperava - eram esqueletos semi-apodrecidos e esfarrapados. As vestes não eram estranhas, pareciam peças de um guarda-roupa familiar; de um passado distante, meu passado...
O cortejo desfilou a minha frente, marcando o ritmo com os passos lentos e perturbadores - sempre o mesmo retumbar, torturando-me, fazendo-me lembrar, esquecer, sofrer em silêncio!

Queria gritar, mas nenhum espectro me olhava para notar meu desespero; meus únicos companheiros eram desprovidos de sentimentos - talvez não importasse mais - só o arrastar de pernas e o levantar e cair de braços ritmados sobre bumbos e caixas. Nada além disso. Um desfile vazio indiferente ao único expectador.

Após o que pensei ser séculos senti a fila de horrores descarnados chegar ao final - até as roupas de minha infância revi - mas meu terror , meu palpitar descompassado começou a chegar aos extremos mais insuportáveis. Caixões grandes, pequenos - de vários tipos - começaram a desfilar ante meus olhos paralisados, olhos que eu morbidamente não conseguia fechar, por mais que eu quisesse fechá-los, sabia que não conseguiria.

No meu íntimo eu sabia, ah como sabia - ninguém precisava me explicar. Não é assim? Vemos uma parte e sabemos qual é o todo? Pois bem, sabia que eram os caixões de todos os que conheci em minha vida de peregrino nesta terra - a princípio pensei ser algo como pedaços de meu ser, mas uma energia viva, uma intuição me fez descobrir a realidade do que estava flutuando, desfilando perante meus olhos - vindo da escuridão e indo para as trevas absolutas, a inconsciência, a não-existência, o desaparecer de minha memória. Minha memória, ah, se apagando, escoando através de minhas lágrimas involuntárias para a mais completa e infinita escuridão...

Por que estou chorando? Porquê?


"Vivendo era teu açoite; morto, serei tua morte".
Martinho Lutero





Fim por hoje...



A paralisia passou? Pode se mexer? Feche o chuveiro e deixe Zona Crepuscular..., achou o que veio procurar? Não foi desta vez? Curioso, seria capaz de afirmar que você achou o que procurava, só não quer levar, só não quer encarar. Não agora, não neste momento da jornada heróica. Cuidado...a ampulheta corre, o Ancião dos Dias nos aguarda.






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