quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Zona Crepuscular suplica: Você tem um rosto para mim?








Zona Crepuscular denuncia: Cada vez mais pessoas estão perdendo seu rosto e você; também perdeu o seu alguma vez?



Zona Crepuscular – acesse contos inesperados que ocorrem na hora mágica... nem dia, nem noite.



Neste post você mergulhará no conto “Um rosto para mim”:


Perder o rosto?
Ora, perder o rosto é a coisa mais banal do mundo, quem já não perdeu o seu? Mas geralmente a pessoa o reencontra em poucos dias. Ele não vai muito longe não. Mas, como deve perceber, este não foi meu caso.

O engraçado é que não me lembro bem o dia que o perdi já são tantos dias sem ele. A minha sorte e azar é que as pessoas não parecem se preocupar com o homem sem rosto são vistos normalmente circulando pela cidade e cada um tem seus próprios problemas para dar atenção e, no final das contas, é temporário, todo mundo sem exceção encontra o seu rosto novamente, mais dia, menos dia. Bem, acho que podem me chamar pelo meu novo nome: Exceção!

Devo ter perdido meu rosto num dia frio e chuvoso no início do inverno e já se passaram tantos dias chuvosos desde então, nem fico triste em lidar com os dias nebulosos; minha obsessão é com o fato de eu não ter mais rosto, de não me recordar de como era antes. Engraçado é que dá para ver, ouvir, falar, cheirar e sentir, mas sem rosto...não, não é engraçado. Nunca fui fã de fotografias, filmagens, caricaturas, fotolog e agora percebo o mal que fiz. Agora sem rosto tomei algumas resoluções necessárias, invadi a casa de minha mãe e furtei uma velha foto de criança – aquele era eu? – digamos que a foto pertence a um passado e meu rosto não era bolachudo como fora no passado – disto eu me lembrava, ou não? Joguei a foto num canto da sala e me senti angustiado por muitos dias. Seria sem rosto para sempre? No-face?
Pensei em novas soluções para minha pequena tragédia pessoal...
Vendem máscaras na cidade, só que não vendem para quem não tem rosto, tentei comprar ou furtar uma - minha ética estava em suspenso pelo que pode perceber - na Praça Benedito Calixto em Pinheiros onde existe uma feira de antiguidades, arte e curiosidades, mas sem sucesso – no fim, achei a idéia de furto humilhante, o problema não era dinheiro, mas orgulho. Abortei a idéia, afinal a graça de usar máscara é ter um rosto por baixo e isto eu não tinha.
Pintar um rosto? Fora de cogitação, afinal eu tinha o meu, perdido em algum lugar nesta cidade – só espero que não tenha virado item de exportação ou sido enviado ilegalmente para outro país.

Sabe, existem vantagens em não ter rosto, afinal agora não posso ser desfigurado, também posso observar as pessoas sem ser visto ou reconhecido. Alguns dias atrás pensei em fazer amizade com outro sem-face, ou no-face como eu os chamava secretamente, mas imagine-se sentado na mesa de um bar e conversando com alguém que você não pode fazer a leitura facial e labial; as frases são gélidas, impessoais e, por vezes, desconectadas – você já deve ter se sentido assim conversando com algumas pessoas no telefone ou aparelho celular. E o pior, o tema da conversa seria único, estamos sem rosto, quando recuperamos o rosto – perdemos o rosto, quando acharemos o rosto e blá, blá, blá. Um horrível, samba de uma nota só. “Recuperar o rosto e voltar a ser alguém”. Creio que minha teoria de amizade entre no-faces é perturbadora – é assustador ouvir uma voz e não ver lábios se mexendo, pior que a dublagem brasileira de certos filmes e novelas mexicanas. O estranhamento assusta.

Como começamos a perder o rosto? Não se sabe ao certo, mas acho que a doença – se é que posso chamar assim – começou nos trens municipais de São Paulo. Pessoas que se conheciam pararam de se cumprimentar, cansadas, sonolentas, estressadas, inconseqüentes; pessoas que choravam por um motivo qualquer passaram a ser sistematicamente ignoradas e logo com o desenvolver desta indiferença cotidiana começaram a surgir os sem-face, sempre num número pequeno, mas contínuo e constante. Alguns dizem a meia-voz que estão aumentando, uma praga, uma maldição, um vírus. Talvez seja uma ponta de iceberg, afinal outros podem estar nesta condição permanente como eu; um novo fenômeno surgido são aqueles que tem face e se consideram no-face devido à solidão e a vida anônima que levam hoje nos grandes centros urbanos. Solitários, pagando sua conta da água, de luz, morando em grandes apartamentos e esperando ansiosamente que o cachorrinho ou gato de estimação passe a falar. No campo não é muito diferente. O engraçado é que os sem-face não são motivos de reportagem onde quer que seja, nem tevê, nem rádio, nem jornais, nem youtube, nem nada. Há um pacto silencioso no mundo quanto a esta realidade como há em relação a diversas outras feridas que vemos por aí. Se porventura um sem-face aparece numa transmissão ou numa foto de algum evento, logo editam, apagam, atrasam transmissão ou creditam tal aparição à falha de equipamento, orbes, condição atmosférica ou de luz inapropriada, poeira suspensa ou desconsideram o fato e pronto. Sei de tudo isto, sinto na carne!

Os Sem-face não existem e eu, como muitos, os ignorava por completo, como uma curiosidade que não desperta interesse profundo ou como algo contagioso a se evitar. Bem, agora não dá para ignorar já que eu faço parte das fileiras deste grupo tão estranho e desprezado. Só tenho agora uma certeza, tenho o superpoder mais maldito do planeta, INVISIBILIDADE!

Você tem um rosto para mim?



Fim, por enquanto...



Você esta deixando a Zona Crepuscular, tudo bem? Concluiu esta leitura? Levanta um pouco, dê uma volta, respira fundo, ligue para um amigo, uma amiga e pergunte “como quem não quer nada” se o mundo ainda está nos eixos; se não há pessoas sem face circulando em seu bairro – e aproveite e vá ao banheiro verificar algo no espelho, só por garantia!

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